A
desordem, o superpovoamento urbano e a falta de saneamento
básico são três das mais gritantes características
das grandes cidades brasileiras. O sistema de abastecimento
de água potável não chega a 85% das residências
e quase a metade delas não está ligada às
redes de esgoto. Além disso, estima-se que o déficit
habitacional esteja em torno de 6,6 milhões de moradias
em todo o país. Estes são os dados alarmantes
do Ministério das Cidades.
Para tentar reverter os números,
o governo aposta na aplicação do Estatuto da
Cidade (na verdade uma lei, e federal: no 10.257), que obriga
os 1.487 municípios com mais de 20 mil habitantes –
onde, segundo o IBGE, vivem cerca de 80% da população
brasileira – a elaborarem ou revisarem seus planos diretores
até 2006. As cidades turísticas, integrantes
de regiões metropolitanas ou sob a influência
de atividades de grande impacto ambiental também se
enquadram na lei.
“Como plano diretor, entenda-se uma lei municipal,
aprovada pela Câmara dos Vereadores, representante de
um pacto entre o poder legislativo, o poder executivo e a
sociedade de um município, em torno de um projeto que
a cidade tem para seu próprio território”,
explica Renato Cymbalista, coordenador do Núcleo de
Urbanismo do Instituto Pólis, em São Paulo.
O plano diretor aplica à realidade de cada lugar as
regras gerais estabelecidas pelo Estatuto da Cidade, entre
as quais está a exigência da participação
popular durante a formulação dos planos.
“O processo participativo é essencial. Antigamente,
os planos eram feitos por equipes técnicas, desvinculadas
do cotidiano das cidades. O resultado ou não tinha
utilidade prática ou desconsiderava a população
de baixa renda”, diz Raquel Rolnik, secretária
nacional de Programas Urbanos. “O que estamos propondo
às prefeituras é aproveitar esse momento para
reverter o modelo excludente de cidade. ”Segundo ela,
cerca de 2.300 municípios passarão pelo processo
e o Ministério das Cidades está trabalhando
para garantir que todos eles consigam aprovar seus planos
até 2006. Os prefeitos e vereadores das localidades
onde esse objetivo não for alcançado poderão
sofrer processos de impeachment.
O plano e a realidade
A preocupação é tanta que em 2004,
pela primeira vez, o orçamento da União teve
uma linha exclusiva para o apoio na elaboração
de planos diretores, no valor de R$ 5 milhões. Para
2005, o ministério proporá um valor de R$ 15
milhões. Além do apoio financeiro, o governo
federal está oferecendo suporte técnico aos
municípios, como capacitação de pessoal
e difusão de informações por meio de
cartilhas, CDs e cursos à distância. “Para
tudo ficar pronto em 2006, o próximo ano será
fundamental. Ao final do processo, gostaríamos de poder
dizer que 2005 foi um ano marcado pela elaboração
dos planos diretores em muitas cidades brasileiras”,
diz Raquel.
De acordo com Renato Cymbalista, a noção de
direito à cidade foi amadurecida e consolidada em 1996,
durante a Conferência das Nações Unidas
sobre Assentamentos Humanos, Habitat II, realizada em Istambul.
Durante o 3o Fórum Social Mundial, em 2003, foi elaborada
a Carta Mundial pelo Direito à Cidade, tendo como princípios
o exercício pleno da cidadania, a gestão democrática
da cidade e a função social da propriedade e
da cidade, todos contidos, de alguma forma, na Lei no 10.257.
Sancionado em julho de 2001, o Estatuto da Cidade é
considerado uma grande conquista pelo Fórum Nacional
de Reforma Urbana, articulação de movimentos
e organizações do terceiro setor fundada em
1987. O estatuto garante a todos o direito a cidades sustentáveis,
“entendido como o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura
urbana, ao transporte e aos serviços públicos,
ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.
Mas, entre a lei e a realidade, populações inteiras
não usufruem os direitos mais básicos.
O estatuto disponibiliza aos municípios uma série
de ferramentas para melhor organizar seu território,
garantindo o direito à cidade. A função
do plano diretor é justamente definir como estas ferramentas
serão usadas para induzir o crescimento organizado.
Entre elas estão medidas que ajudam a legalizar moradias
irregulares, obrigam o uso social da propriedade, facilitam
a construção de moradias populares e permitem
às prefeituras arrecadar mais dinheiro para aplicar
em habitação. O estatuto torna obrigatório
o orçamento participativo e afirma que a população
deve ser consultada – por meio de referendos e plebiscitos
– sempre que alguma decisão importante for tomada.
Santo André é exemplo de construção
coletiva
Para Raquel Rolnik e Renato Cymbalista, o segredo para
o sucesso de um plano diretor bem-sucedido é a participação
de toda a sociedade. “Durante a formulação,
poder público e população devem estabelecer
a finalidade de cada zona, destinando os recursos territoriais
para diferentes fins”, comenta Raquel. Segundo Cymbalista,
“a participação popular é um grande
recurso para garantir os interesses da sociedade e a eficaz
aplicação dos planos. Ao participar da elaboração,
a população tem mais condições
de se reconhecer na lei. Quanto maior a identificação,
maiores a luta e a defesa por ela”, prevê. O estatuto
determina a formação de conselhos de habitação
e desenvolvimento urbano para fiscalizar a aplicação
dos planos.
Cymbalista afirma, ainda, que os municípios menores,
mesmo não sendo obrigados, também deveriam fazer
seus planos diretores: “É uma lei tanto preventiva
quanto corretiva.”
A cidade paulista de Santo André, com cerca de 650
mil moradores, seguiu à risca a exigência de
construir coletivamente seu plano diretor. O processo, que
começou no final de 2002 e entregou à Câmara
Municipal o texto final em março deste ano, foi escolhido
pelo programa Gestão Pública e Cidadania, desenvolvido
pela Fundação Getúlio Vargas, como uma
das 30 melhores práticas de gestão participativa.
“A cidade já vinha recolhendo informações
desde 1999, quando iniciamos o projeto Santo André
Cidade Futuro, que traçava metas para os próximos
20 anos. Direcionamos o debate para a criação
do plano diretor, aproveitando o que já havia sido
discutido”, esclarece a arquiteta Paola Manso, da Secretaria
Municipal de Orçamento e Planejamento Participativo.
Durante o processo, a prefeitura se preocupou em tornar a
discussão transversal a todas as áreas que fossem
afetadas pelo plano. Assim, setores como saneamento ambiental,
habitação, transporte público e outros
participaram de todas as reuniões internas, o que garantiu
a coerência das propostas que partiram do poder público.
Ao todo, participaram 2,3 mil pessoas diretamente, além
de 79 movimentos sociais, 19 ONGs, entidades técnicas,
acadêmicas e de pesquisa e 52 empresários ligados
ao desenvolvimento urbano.
“Foi uma discussão amplamente participativa.
Houve divulgação de informações
e procura de lideranças por parte da prefeitura”,
confirma Maria de Fátima Carvalho, membro da Cooperativa
Habitacional dos Servidores Públicos de Santo André,
uma das entidades participantes.
As informações são
da Fundação Banco do Brasil.
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