Simone
Braz de Oliveira, 30 anos, cata papelão e latinhas
no lixo dos condomínios ricos próximos à
Cidade de Deus, onde mora num barraco de madeira à
beira do Rio Grande. Com Simone, vivem o companheiro desempregado,
uma filha de 11 anos e dois netos dele. É ela quem
garante a comida na panela correndo atrás de doações
e vendendo material para reciclagem. Na região metropolitana
do Rio de Janeiro, 31,9% das famílias são chefiadas
por mulheres, guerreiras como Simone.
Os dados são do último PNAD, pesquisa nacional
de amostra de domicílios realizada pelo IBGE entre
os anos de 2002 e 2003.
“O aumento de mulheres chefiando famílias reflete
as mudanças que ocorreram na sociedade. Também
crescem famílias chefiadas por uma só pessoa”,
analisa Clara Araújo, pesquisadora e professora de
Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da UERJ
Simone estudou até a segunda série do ensino
fundamental. Seu companheiro é pedreiro, está
sem trabalho há dois anos e, às vezes, ajuda
a coletar as latinhas e o papelão. Ela não esconde
que se sente desconfortável com o fato de sustentar
a casa. “Quem deve manter é o homem”, opina.
“Gostaria que ele arranjasse um emprego fixo, rezo todo
dia para isso acontecer. Quando ele está trabalhando,
não gosta que eu trabalhe”, completa.
Homens na chefia têm mais ajuda
O grupo de mulheres que chefiam famílias tem
relação direta com a pobreza. O PNAD revela
que 57,9% das mulheres da região metropolitana do Rio
têm rendimentos que vão de meio a dois salários
mínimos, enquanto os homens ocupados com os mesmos
rendimentos representam 37,7%.
“Quando o homem é o chefe de família,
muitos são casados e a renda familiar é a soma
do trabalho dos dois. Em cerca de 95% dos casos, a chefe mulher
é sozinha e tem que arcar com o ônus da vida
familiar”, analisa Clara. “Ainda existe uma idéia
corrente, preconceituosa, de que a renda feminina é
complementar, por isso é menor”, completa.
Nelly da Cruz Lima, 65 anos, moradora da Cidade de Deus,
na Zona Oeste, é responsável pela família
de dois filhos e cinco netos. É diarista desde a morte
do marido, quando os filhos ainda eram crianças. Dribla
as dores nos joelhos causadas pela artrose para enfrentar
as faxinas nas casas de suas clientes. “Já suportei
muita coisa. As patroas não pagam o que vale o serviço,
mas a gente aceita porque precisa”, conforma-se a diarista.
Ela é um exemplo de uma outra tendência apontada
pelas estatísticas - a de idosos que ainda trabalham
mesmo recebendo aposentadoria ou pensão. No Rio de
Janeiro, cerca de 5,6% das mulheres e 18,1 % dos homens com
60 anos ou mais e que recebem aposentadoria ainda exercem
algum tipo de atividade remunerada.
Menor escolaridade, menos emprego
Na avaliação da socióloga Clara
Araújo, as chefes de família em pior situação
são aquelas com baixa escolaridade e menor competitividade
no mercado de trabalho. “Já procurei vagas para
passar roupa, cozinhar e fazer faxina. É só
o que eu sei fazer, mas não consigo”, lamenta
Simone.
São justamente as mulheres que estudaram até
três anos que mais sofrem com a falta de emprego - destas,
somente 11% declararam ter alguma ocupação remunerada,
contra 49,9% das mulheres com 11 anos ou mais de estudo.
A venda do material que recolhe do lixo rende tão
pouco que Simone não sabe contabilizar quanto ganha
por mês. O sustento da família precisa ainda
de doações. “Sou eu quem corre atrás
das cestas básicas. Quando não tem papelão
para catar e nada para comer dentro de casa não sei
o que fazer”, confessa a catadora.
Mulheres ganham menos 30%
A participação das mulheres no mercado
de trabalho cresceu nos últimos dez anos, enquanto
a dos homens se retraiu. Mesmo assim, elas ganham 30% a menos
do que eles, em média. “As áreas que absorvem
mais mulheres antes eram dominadas por homens. Quando elas
entram, o piso salarial também diminui”, observa
Clara.
Elas lideram nas categorias de trabalhos não remunerados,
entre trabalhadores que produzem para o consumo próprio
e entre trabalhadores domésticos, mostrando que ainda
existem diferenças marcantes no tipo de ocupação
entre homens e mulheres “Existe uma segregação
ocupacional, campos de trabalho característicos de
mulheres e homens. Mas isso está mudando, pouco a pouco”,
analisa a socióloga.
A rotina do trabalho doméstico é bem conhecida
por Nelly. Ela trocou o emprego de servente em um hospital,
com carteira assinada, para ser diarista autônoma. “Trabalhar
em casa particular é mais sossegado, não tem
tanta fofoca. Eu chego, a patroa sai e não tem chateação”,
revela.
A aposentada consegue realizar, em média, 14 faxinas
por mês, a R$ 50 cada uma. Somando à aposentadoria,
ela consegue manter as contas da casa e aposta que como diarista
ganha mais do que muito homem. “Quatrocentos reais,
que é o que se paga por aí, é muito pouco
para quem tem filhos e mulher para sustentar”, opina.
Presença nas escolas
Mas nem todas as perspectivas são negativas.
O aumento da escolaridade entre as mulheres, e o predomínio
delas no ensino médio, é sinal de que as estatísticas
desfavoráveis tendem a mudar. Uma das razões
para elas estarem em maior número nos bancos de escola
é a evasão escolar dos rapazes para ingressar
no mercado de trabalho.
“A escolaridade e a qualificação profissional
são aspectos importantes que contribuem para melhorar
a situação da mulher”, avalia Clara.
No Rio de Janeiro, a média de anos de estudo entre
a população ocupada é de 9 anos para
elas e de 8,2 para eles. “Esse é um sinal importante.
No começo do século passado elas não
podiam nem ir a escola”, compara a socióloga.
Fernanda Pimenta Maciel tem 28 anos, está separada
e com uma filha de 3 anos. Em 2002, ela trabalhava em um estacionamento
e decidiu fazer um curso técnico de especialização
em instrumentação cirúrgica. “Já
tinha o diploma do ensino médio e estava ali, ganhando
cerca de R$ 400 e sem perspectivas. Resolvi voltar a estudar”,
conta. Desde agosto, ela trabalha como profissional liberal
em uma equipe que realiza cirurgias em diversos hospitais.
Ela rompeu um casamento de 10 anos e banca a maior parte
das despesas da filha, mas está na briga por uma pensão
alimentícia para a criança.
Quando decidiu fazer o curso, Fernanda ainda estava casada.
O ex-marido, que é técnico em informática,
ficou assustado com a possibilidade de ver sua mulher ganhar
mais do que ele. “Tem homens e tem machos. Os homens
podem até ficar desconfortáveis, mas aceitam.
Os machos não”, opina. Ela acredita que os benefícios
de ter um trabalho próprio estão além
da independência financeira: “Quem fica sem trabalho
acaba tendo todo o tipo de problemas emocionais”.
Virada tem preço
Insatisfação é a palavra-chave
para compreender a indisposição das mulheres
com seus relacionamentos. “Para a mulher que trabalha,
o marido pode acabar sendo um estorvo, porque além
de não ajudar nas tarefas domésticas, ele ainda
cria novas demandas que as sobrecarregam”, observa Mirian
Goldenberg, doutora em antropologia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, que realizou pesquisa sobre as mudanças
nos papéis de gênero, sexualidade e conjugalidade
da cultura brasileira.
Aquelas que decidem dar uma virada na vida podem pagar um
preço alto. Mas nem por isso devem se lamentar. “A
mulher chefe de família não é vítima.
O aumento do número de mulheres chefiando famílias
está ligado a vários fatores. Entre eles, escolhas
pessoais de romper com casamentos opressores”, enfatiza
a socióloga Clara Araújo.
Uma pesquisa realizada pelo departamento de Ciências
Sociais da UERJ mostra que grande parte dos homens está
aberta para questões como o direito das mulheres, a
participação no mercado de trabalho e reconhecem
que deveriam se comprometer mais com os filhos.
Mas quando a pergunta é sobre o trabalho doméstico,
a dupla jornada ainda recai sobre elas: 70% das mulheres afirmam
que lavam e passam as roupas, enquanto entre os homens, o
índice é menor do que 10%. “Estamos caminhando
para uma mudança de mentalidade e de atitude. Mas a
maneira como são compartilhadas as tarefas domésticas
mudou pouco”, analisa Clara.
Saúde pública precária
Para a diarista Nelly, uma das coisas que mais comprometem
a atividade profissional é a debilidade dos serviços
de saúde pública. “Tinha que ter mais
serviços para as mulheres e seus filhos”, reivindica.
Na opinião de Clara Araújo, os serviços
de saúde afetam indiretamente as mulheres. “Se
tem alguém doente, uma criança ou um idoso,
é ela quem vai para a fila perder o dia todo de trabalho,
arriscando o seu emprego” avalia.
Não ter onde deixar os filhos também é
um empecilho para a mulher que busca trabalho. “Tem
vezes que não vale a pena trabalhar e ter que pagar
alguém para olhar a criança”, justifica
a catadora Simone.
Para Fernanda, a ajuda da mãe e da ex-cunhada são
fundamentais quando não dá tempo de apanhar
o filho na creche. “Trabalho mais tranqüila sabendo
que posso contar com a ajuda delas”, reconhece.
“Segundo uma pesquisa da ONU, vai levar cerca de 400
anos para termos igualdade de gêneros no mundo todo”,
avalia Mirian. Para a antropóloga, a tentativa de conciliar
o papel de mãe, dona-de-casa e profissional acaba comprometendo
o investimento na carreira. “Elas se auto-excluem do
mercado de trabalho, querem entrar na competição
de uma forma mais light e valorizam outros papéis além
do profissional”, observa.
As informações são do site Viva Favela.
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