Mais da metade das ocorrências
de estupro registradas nos distritos policiais e nas delegacias
especializadas de defesa da mulher no Estado de São
Paulo nem chega a resultar em inquérito policial.
A apuração da maior parte dos casos de estupro
--considerado crime hediondo, com pena de seis a dez anos
de prisão-- não vai além do boletim de
ocorrência, segundo levantamento da Fundação
Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) referente
ao período de 1997 a 2002.
No ano passado, por exemplo, dos 3.883 casos de estupro registrados
no Estado de São Paulo, apenas 1.913 viraram inquérito
policial e foram investigados.
Ou seja: em pelo menos 50,7% dos casos a apuração
não chegou ao autor do crime -no caso de todos os registros
serem verdadeiros. Esses percentuais foram ainda mais baixos
no anos anteriores. O índice de impunidade é
bem maior, pois boa parte dos inquéritos abertos também
não chega a esclarecer o crime (não há
estatísticas específicas). O levantamento do
Seade não leva em conta a subnotificação.
Os números da capital paulista são ainda mais
preocupantes. Em 2002, 66,2% dos casos de estupro registrados
não resultaram em inquérito policial. Dos 1.219
registros, apenas 412 viraram inquérito. O restante
não passou do boletim de ocorrência.
Para policiais que atuam na área e especialistas,
a diferença entre as ocorrências e os inquéritos
abertos é explicada pela legislação penal
--que estipula que a investigação de crimes
sexuais só prossegue se a mulher representar contra
o agressor, diferentemente de crimes como homicídio
e roubo, nos quais a abertura de inquérito é
automática-- e pela não-colaboração
da vítima (que não retorna ao distrito policial
para evitar constrangimentos).
ONGs (organizações não-governamentais)
de defesa dos direitos das mulheres incluem um terceiro motivo:
o "descaso" do Estado, que não assessora
as vítimas de estupro corretamente.
A legislação penal estabelece que a investigação
sobre um estupro só terá andamento se a vítima
concordar. Ela pode representar contra o agressor até
seis meses depois do registro da ocorrência. A intenção
é preservar a mulher de possíveis constrangimentos
e traumas maiores, segundo o advogado criminalista Luiz Flávio
Gomes, doutor em direito penal.
Só que algo acontece entre o momento em que a vítima
vai à delegacia fazer o boletim de ocorrência,
disposta a denunciar o crime, e a sua posterior negativa em
retornar para representar contra o autor, o que exige a abertura
de inquérito policial.
Segundo a assessora de projetos da Fundação
Seade Eliana Bordini, que participou da sistematização
dos dados policiais, a necessidade de representação
da vítima explica a diferença entre os números
das ocorrências e dos inquéritos instaurados.
Segundo ela, o medo de um constrangimento maior afugentaria
as vítimas --na delegacia, a vítima seria informada
sobre todos os trâmites do caso na Justiça.
Para a Maria Amélia de Almeida Teles, da União
de Mulheres de São Paulo, essa desistência das
vítimas de estupro em denunciar seus agressores também
é explicada pela "omissão" e "descaso"
do Estado. "Chegam para a vítima e dizem para
ela que é uma ação penal condicionada
à representação. Você acha que
ela, depois de ter sido violentada, tem condições
de tomar uma decisão?"
Para Maria das Graças Perera de Mello, presidente
da Comissão da Mulher Advogada da OAB (Ordem dos Advogados
do Brasil), a vítima desiste de denunciar seu agressor
ao perceber a "morosidade" da Justiça e da
polícia. "É o descrédito em relação
a uma solução possível", afirmou.
Gilmar Penteado,
da Folha de S.Paulo.
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