Quem passa de carro nas Marginais
vê só as cabecinhas, protegidas por capacetes.
Ao longo de 24,5 quilômetros, do Cebolão à
Barragem da Penha, lá estão eles - José
Milton, Jesus, Mick Jagger, 2.500 ao todo, os trabalhadores
da obra que está mudando o Rio Tietê. Equilibram-se
no barranco, detonam rochas, manejam as escavadeiras que já
retiraram 9 milhões de metros cúbicos de material
da calha, enchem os caminhões de entulho. À
noite, as barcaças continuam a dragar o rio e ainda
há homens lá.
Com esse horário de verão, está um breu
quando eles saem de casa para o batente. Pegam trem, ônibus
- às vezes mais de um - e, com o dia amanhecendo, descem
as escadas que levam às frentes de trabalho, em quatro
lotes. Trocam de roupa, tomam café no refeitório
e vão para o TDS - treinamento de segurança
no trabalho. Capacete, botas e protetores de ouvido são
obrigatórios.
Já para o fedor do rio não tem jeito, a não
ser se acostumar. E eles se acostumam logo. Em poucos dias
já nem sentem o cheiro, insuportável para o
visitante. "Só lembro como esse rio fede quando
passo de ônibus na Marginal. Aqui de dentro não",
conta o marinheiro José Milton de Lima, de 44 anos,
pernambucano de São Bento do Una de onde veio pequeno
e para onde nunca mais voltou. Ele passa o dia no rio e lembra
que no começo sentia dor de cabeça, dificuldade
para respirar, garganta seca. Com duas semanas, estava anestesiado.
Claro que se fica um mês sem chover, o bicho pega. A
água fermenta de borbulhar. "Dizem que é
gás metano", arrisca José Milton. "Mas
bastam dois ou três dias de chuva para a água
ficar limpinha." Limpinha quer dizer menos lodosa, que
é seu estado normal. Reparando bem, a água do
Rio Pinheiros é preta; a do Tietê, marrom. Ambas,
nojentas. De lá já foram retiradas 11 mil toneladas
de lixo e 120 mil pneus.
Da enxada para a enxada
E é nesse ambiente que o pernambucano Joseildo
Silvio de Lima, de 22 anos, trabalha sem traumas. Oito horas
com o corpo inclinado na beira do rio preparando taludes -
a proteção das margens, 19 quilômetros
de barrancos que estão recebendo muros de contenção
de concreto. Em Serra Talhada, ele plantava milho, feijão
e mandioca. Aqui, faz o ajuste fino na terra que a máquina
deixa irregular. "Saí da enxada e vim para a enxada.
É minha sina."
Mas acha que está no lucro: lá não tinha
salário; aqui, ganha R$ 545,00. Paga R$ 150,00 de aluguel
do quarto de pensão, na Estação da Luz,
onde vive com a mulher, Iolanda, e a filha, Sara Evelyn, de
3 anos. Sabe-se lá como, ainda guarda um pouquinho.
"Estou fazendo uma poupança."
Dos nove irmãos de Joseildo, dois trabalham na obra
que está aprofundando a calha do Tietê em 2,5
metros em média e alargando o rio para aumentar a vazão
da água e reduzir as enchentes nas Marginais e na cidade.
Primeiro veio Ciço, que foi arranjando colocação
para os outros. São vizinhos na pensão da Luz
que, aliás, é quase toda alugada a pernambucanos.
Joseildo aprecia a morada no centro. "Para vir trabalhar
pego só um ônibus e saio na frente da obra. Na
volta, desço na Avenida Rio Branco, pego o Paiçandu
e estou em casa."
Talento
Jesus de Paulo Pereira de Souza, 24 anos de idade,
piauiense, há oito anos em São Paulo, estado
civil "enrolado", três filhos, acorda às
4h30, sai de casa às 5 horas, pega dois ônibus,
trem e mais um ônibus até o Piqueri, onde fica
a sua frente de trabalho. Começa a trabalhar às
7h20 e vai até as 17h20, com uma hora de almoço
e duas horas extras por dia. Ganha R$ 757,00, tem aumento
prometido e acha que não se deve reclamar de barriga
cheia. "Se falar: Jesus lave o banheiro, Jesus varra
o chão, Jesus faz."
Jesus pede licença para contar que é músico.
Diz que toca teclado, violão, guitarra e bateria, que
compõe e faz jingles no estilo country. "Estou
gravando um CD", revela. "Jesus vive de ilusão.
Ele não toca nada", desmente o chefe dele, que
tem a mania de dar umas incertas na casa de seus comandados
para ver se eles fazem mesmo o que dizem - "Às
vezes, o sujeito parece honesto, mas lá fora é
uma tranqueira!"
Indiferente à intriga ("Desde quando o chefe
entende de música?"), Jesus conta que gostaria
de dedicar-se só às cordas e cifras, mas não
é doido de trocar o certo pelo duvidoso. Ele e três
irmãos dividem dois cômodos em Osasco. Todo mês
enviam parte do salário para os pais, que ficaram no
Piauí. Ainda outro dia, mandaram um televisor de presente.
Só no Lote 1, sob o Cebolão, são 630
peões, 520 diretamente no rio. Fazer a proteção
de taludes exige muita gente, porque é um trabalho
artesanal. Eles esticam a tela, enchem de pedras e as arrumam
com as mãos, uma por uma. Horas naquela posição.
Depois fecham a gaiola com outra tela. Por cima, vai o concreto.
Quem faz isso é Nenen, Ceará, Bingão,
Lagoa, Mick Jagger (um peão com a cara do vocalista
dos Rolling Stones), Papa-Tudo (um paraibano que come três
marmitex numa refeição) e um tal de The Flash,
que ganhou o apelido por causa da agilidade.
Aliás, ali se desfaz no rio o mito de que os nordestinos
são preguiçosos. "Se fossem, não
fariam esse trabalho duro", diz o engenheiro Eduardo
Neila, que os chefia.
O encarregado de recursos humanos, Jean Alexander Paulina,
traça o perfil do pessoal que trabalha no rio paulista.
A maioria vem do Norte ou Nordeste e trabalhou na construção
civil, tem entre 24 e 35 anos, mora na periferia, mantém
a família daqui e ajuda os parentes que deixou na terra
natal.
ROSA BASTOS
do jornal O Estado de S. Paulo
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