Ruy Ohtake anda pelas ruas de Heliópolis,
a maior favela de São Paulo, como se fosse um homem
duplo. O arquiteto famoso, criador de prédios polêmicos
como o do hotel Unique em São Paulo, acena, dá
autógrafos. O Ohtake militante entra no bar do Geraldo,
pede uma pinga, toma os dois dedos de Villa Velha num gole
e diz:
"Nenhuma biblioteca no Brasil começou assim".
A biblioteca a que ele se refere é a de Heliópolis,
feita em duas casas da favela. O ineditismo é que os
1.000 primeiros livros do acervo não foram doados,
como é regra, mas escolhidos por José Castilho
Marques Neto, diretor da biblioteca Mário de Andrade
e editor da Editora da Unesp.
A biblioteca, que deve ser inaugurada no próximo mês,
é parte de um pacote de obras em Heliópolis
impulsionado por Ohtake -a favela de 100 mil habitantes ganhará
um cinema de 120 lugares, previsto para ser inaugurado em
fevereiro, um centro cultural projetado por ele e uma galeria
para exposições. Ohtake projetou a fachada do
centro, que funcionará em um galpão -será
a primeira obra de um arquiteto de renome numa favela paulistana
e deve ficar pronta no final de 2005.
"Tudo aqui tem de ter dignidade. Não é
porque é pobre que você vai fazer no olho. Não
vamos fazer biblioteca com aqueles livros que as pessoas não
querem mais", diz. Ohtake usou seu prestígio e
obteve recursos do banco Pan-Americano para a biblioteca e
da construtora Matec para o centro cultural. O banco montou
uma microagência ao lado da biblioteca.
Inclusão arquitetônica
Ohtake, 66, está tomado por grandes projetos,
como a igreja para 100 mil pessoas que desenhou para o padre
Marcelo, mas virou um freqüentador de Heliópolis
a pedido dos moradores.
Em dezembro de 2003, o líder comunitário João
Miranda Neto leu uma reportagem na qual Ohtake dizia que a
maior feiura de São Paulo era a diferença entre
o Morumbi e a favela de Heliópolis. Ligou para o escritório
do arquiteto e fez um pedido que desconcertou Ohtake: "O
senhor não quer ajudar a deixar a favela menos feia?",
como lembra Miranda Neto, presidente da Associação
de Núcleos, Associações e Sociedade de
Moradores de Heliópolis e São João Clímaco).
Ohtake diz que topou porque ficou impressionado com a solidariedade
dos moradores. "Todo mundo se conhece e se ajuda. O vizinho
cuida da criança para a mãe trabalhar, cuida
do doente. No meu prédio eu não sei quem é
o cara do 4º andar", compara.
A idéia de Ohtake é que a exclusão social
é acompanhada da exclusão territorial e arquitetônica.
A favela, para ele, não pode mais ser considerada uma
ocupação temporária que, por conta disso,
é um amontoado de déficits. A infra-estrutura
é atribuição do Estado, segundo ele,
mas o resto deve ser uma tarefa de todos.
A primeira tarefa a que Ohtake se propôs foi ajudar
os moradores a pintar 278 casas das ruas da Mina e Paraíba.
Para que não o acusassem de autoritário, sugeriu
que adolescentes pesquisassem, casa por casa, qual era a cor
preferida do morador para a fachada.
Aí entrou a sua visão da cor na arquitetura
-fez combinações geométricas em tons
diferentes, sempre com cores vivas. Discorda dos que consideram
que as duas ruas da favela ficaram parecidas com o colorido
da Boca, o bairro multicolorido de Buenos Aires.
"Cor fraca é coisa de europeu. As cores brasileiras
são fortes. É só ver as cidades brasileiras
mais antigas. Parati e Olinda tem cores fortes." Miranda
Neto não endossa a visão de que pintar casa
é uma operação cosmética: "Casa
pintada aumenta a auto-estima". O fato é que,
após a pintura, não há mais casa grafitada
em Heliópolis.
Ohtake conta que não foi por acaso que iniciou o projeto
com uma operação para elevar o moral dos moradores.
A principal preocupação dele é fortalecer
a identidade cultural deles. Vem daí a ênfase
na atividade cultural.
A receita do arquiteto é confrontar os adolescentes
com a arte moderna e contemporânea. Eles já foram
ver a exposição de Picasso na Oca, a de Nuno
Ramos no Centro Cultural Banco do Brasil e a de Nelson Leirner
numa galeria.
A força de São Paulo
A idéia de que cor fraca é "coisa
de europeu" pode ser estendida aos prédios que
projeta. O violeta do Instituto Tomie Ohtake, o verde e preto
do Unique são tentativas de resgatar o uso que se fazia
da cor há 150 anos, de acordo com Ohtake. Ele diz que
não pretende renegar os seus primeiros trabalhos, nos
quais dominava o cinza do concreto aparente; prefere ver a
cor como "uma evolução".
As formas inusuais de seus prédios têm o propósito
de romper a pasmaceira. Segundo ele, São Paulo não
tem uma arquitetura que espelhe a força da cidade:
"São Paulo é uma cidade esquisita: a arquitetura
brasileira é muito forte, mas isso não aparece
na cidade. Minha intenção é provocar
as pessoas com surpresas. A arte e a arquitetura não
podem parar".
A idéia mestra de Ohtake é a de que, sem beleza,
a arquitetura não existe. Ele acredita fazer parte
de uma linhagem de arquitetos que começa com o barroco,
no século 18. "Busco a leveza de Aleijadinho.
Nos profetas de Congonhas parece que as roupas dos profetas
vão se levantar se bater uma brisa." Cita como
exemplo de sua ligação com Aleijadinho (1730-1814)
a fachada do Unique, o concreto que se dobra como pano.
Com Oscar Niemeyer, conta, aprendeu a desafiar a lei da gravidade,
"o parece que vai cair, mas não cai do Unique".
Diz venerar também Vilanova Artigas (1915-1985), de
quem foi aluno na USP, principalmente pelas obras mais heterodoxas,
como a casa que ele projetou para a demógrafa Elza
Berquó. Nesse projeto, Artigas transformou as árvores
que existiam no terreno em colunas.
É esse passado que ele evoca para dizer que sua obra
tem raízes históricas: "A arquitetura que
eu faço não é modismo".
MARIO CESAR CARVALHO
da Folha de S.Paulo
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