|
A antropóloga Eunice Durham,
72, defende uma maior democratização dos CEUs
(centros educacionais unificados) sob a administração
de José Serra (PSDB), prefeito eleito de São
Paulo.
"Os CEUs precisam ser transformados em alguma coisa que
atenda aos estudantes depois da escola pública regular,
para tirá-los da rua e lhes dar uma ampliação
curricular", afirma.
Para ela, os "escolões" paulistanos deveriam
seguir o exemplo da Escola Parque, da Bahia, para onde os
alunos iam depois de ter aulas numa escola pública
regular.
Na Escola Parque, não havia aulas, só atividades
recreativas.
"Com isso, você atendia a uma população
maior e mantinha o investimento na melhoria do ensino fundamental",
argumenta Durham, que é especialista em educação
e foi secretária de Política Educacional do
governo Fernando Henrique Cardoso.
A professora da USP (Universidade de São Paulo) acaba
de lançar o livro "A Dinâmica da Cultura"
(editora Cosacnaify), em que reúne ensaios que cobrem
cinco décadas de pesquisas sob títulos como
"A sociedade vista da periferia" e "Migrantes
rurais", temas que estão no centro de seu embate
contra possíveis simplificações marxistas.
Sobre esses assuntos, ela diz acreditar que o melhor resultado
eleitoral do PT na extrema periferia de São Paulo não
se deve a uma oposição de classes ou a uma identificação
ideológica dos mais pobres com o partido, mas a uma
"captura" de um "resíduo" da imigração
iletrada para a capital paulista -ou analfabetos de chegada
recente ou seus filhos.
Essas pessoas, afirma ela, por serem pouco integradas à
economia e à sociedade, são provavelmente mais
facilmente alcançáveis por uma eficiente militância
de esquerda.
Folha - Qual a sua avaliação
dos CEUs?
Durham - A primeira grande tentativa desse
tipo foi feita com os Cieps [centros integrados de educação
pública], no Rio de Janeiro, que o Darcy Ribeiro fundou.
Mas era uma idéia que, na verdade, vem de uma iniciativa
anterior, do Anísio Teixeira. É preciso muito
cuidado com iniciativas que não se possam generalizar
para a população. É necessário
melhorar a qualidade do ensino para o conjunto da população.
Quando você cria escolas de altíssima qualidade,
você diminui o investimento no resto da população.
O que tem acontecido freqüentemente na história
dos municípios paulistas é isto: os governos
fazem creches maravilhosas, modelo de país desenvolvido,
e criam um número reduzido de creches. Atendem a uma
porcentagem pequena da população, pagam muito
bem aos professores e tiram fotografias fantásticas.
Nesse esquema, ficou em grande parte para o governo estadual
cobrir a rede. É muito fácil fazer um bom ensino
se você reduz o atendimento. Não pode haver CEUs
de um lado e escolas de lata de outro. É preciso ir
igualando para cima. Mas o projeto dos CEUs é extremamente
caro, sem proposta pedagógica inovadora, e, sem dúvida
nenhuma, a população adora. Eu também
gostaria. O projeto inicial dos CEUs é inspirado no
Anísio Teixeira, que criou na Bahia uma coisa chamada
Escola Parque. Era uma solução mais econômica.
Nela, os estudantes tinham um período numa escola da
rede municipal, e noutro período iam para a Escola
Parque, onde não havia aulas regulares, mas os diferentes
tipos de atividade que os CEUs fornecem. Com isso, você
atendia a uma população maior e mantinha o investimento
na melhoria do ensino fundamental. A inovação
do Darcy Ribeiro foi tentar fazer essas duas coisas juntas
-que funcionou muito bem enquanto o Darcy estava à
frente [da idéia], mas depois aconteceu uma enorme
decadência do projeto pedagógico.
Folha - A senhora acredita que a tendência
natural de projetos como esse é ficarem decadentes?
Durham - Acho. São muito caros para
serem mantidos.
Folha - E como a senhora vê a perspectiva
dos CEUs sob uma administração Serra, se tivesse
que dizer o que fazer agora, já que estão aí,
construídos?
Durham - Estudaria a situação
para ver se seria possível transformar os CEUs numa
coisa parecida com a Escola Parque, que atenda a toda uma
população dos alunos das escolas da região.
É preciso aumentar o número de horas de aula
nas escolas. Com teoricamente quatro, na verdade três
horas de aula, não dá para as crianças
aprenderem a ler. Mas isso não é a opinião
do Serra, hein? É a minha. Os CEUs precisam ser transformados
em alguma coisa que atenda aos estudantes depois da escola
regular, para tirá-los da rua e lhes dar uma ampliação
curricular -que não fique apenas em hora de aula, mas
tenha teatro, cinema, música, esporte. Se veria um
uso mais intenso dos CEUs para uma população
mais ampla de crianças. Seria muito bom se nós
déssemos período integral para todas as crianças
do Brasil. Mas entre o ideal e o que é possível
fazer com as verbas existentes hoje existe uma diferença
bastante grande. Democratizar os CEUs. Não demoli-los
nem deixar que pereçam, mas fazer com que eles rendam
mais.
Folha - A senhora trata da periferia no
seu livro. No caso da cidade de São Paulo, parece haver
uma recorrência de voto dessa região no Partido
dos Trabalhadores. E há uma tentativa de explicar isso
com base na diferença entre classes sociais, com
os pobres se aproximando do PT. Como a senhora poderia explicar
isso?
Durham - Há uma explicação
que está mais ou menos presente em todos os meus trabalhos
sobre periferia -que há um processo de integração
de massas provenientes de imigração recente,
que deixa resíduos não-assimilados de imigrações
anteriores. Pessoas que não têm uma condição
satisfatória de empregabilidade, porque não
têm um mínimo de instrução formal
necessária. Há um problema constante, que é
o ingresso de pessoas analfabetas. Desde a década de
40, quando aumenta a migração urbana, você
escolariza a população existente, mas tem um
constante contingente de população com escolaridade
nula ou pequena. Isso praticamente já foi resolvido,
porque finalmente conseguimos, na prática, uma universalização
da ida das crianças à escola. Essa população
é constituída de candidatos quase certos ao
desemprego. É uma população cuja integração
dentro do sistema cultural, do sistema econômico, do
sistema político é ainda muito parcial. Acho
interessante -não quero explicar um fato pelo outro-,
mas não são os bairros operários onde
se concentrou a votação do PT. Mas nesses bairros
onde as pessoas não chegaram a ser operários.
Não é só de chegada recente, mas de resíduo.
Dos que chegaram, muitos já realizaram o trajeto de
integração. Mas sobram resíduos de pessoas
que não mandaram os filhos para a escola, cuja família
se desorganizou inteiramente, que as crianças ficaram
abandonadas na rua -uma população muito difícil
de ser integrada no mercado de trabalho regular. A chegada
tem diminuído, não sei quanto. Mas ainda chega
e constantemente.
Folha - Por que essas pessoas votam no PT?
Dá para arriscar uma hipótese?
Durham - Tenho algumas hipóteses,
mas faz parte da minha responsabilidade não dar palpites.
Posso dizer que condições são essas,
que essas condições da periferia provavelmente
estão associadas a uma votação maior
no PT.
Folha - Uma hipótese...
Durham - Diria que essa população
é mais facilmente alcançada pela militância.
Movimento dos sem-terra e dos sem-teto, que tem uma militância
de esquerda muito organizada, tem uma penetração
muito grande nessa camada. Tem a ver com a escolaridade e
com o tipo de reivindicação. Se você é
organizado para obter benefícios por um partido de
militância de esquerda, a propaganda eleitoral corre
por essa via.
Folha - Há um outro aspecto dessa
nova imigração. Noutro trabalho, a senhora fala
da total integração da imigração
italiana com o que era antes a sociedade brasileira sem eles.
A integração das novas imigrações
internacionais para São Paulo -como bolivianos e chineses-
é menor? Continuará assim?
Durham - Os chineses têm uma certa
vocação para formar colônias muito fechadas.
Os japoneses também tinham, mas isso em grande parte
foi quebrado. Há muita diferença no problema
da integração quando é uma população
muito pobre com pouca instrução e quando é
uma população menos pobre com mais instrução.
Nas condições do Brasil logo após a escravidão,
os italianos, normalmente, boa parte sabia ler e escrever.
E havia a existência de certos valores culturais que,
naquele momento, facilitaram essa integração
e a mobilidade social.
Folha - Como?
Durham - A valorização do trabalho,
a idéia de que realmente você precisa trabalhar
muito, que o trabalho é aquilo que permite vencer na
vida. E um projeto a longo prazo, um investimento muito grande
nos filhos, que é um projeto de mais de uma geração.
Boa parte dessa população, a maioria dessa população,
se beneficiou diretamente da ampliação do sistema
educacional. Quando você associa uma possibilidade,
oferecida no mercado de trabalho, de integração,
com uma possibilidade, oferecida na sociedade, de escolarização,
você tem um caminho fácil de integração.
Mas quando você pega bolivianos muito pobres, precisa
saber, talvez tenham uma alfabetização precária
em português... Se as crianças forem para escola
brasileira, o processo deslancha. É um elemento muito
fundamental. Boa parte da integração dos japoneses
-há duas gerações era uma colônia
bastante fechada- foi o grande aproveitamento que tiveram
da ampliação do ensino médio e do ensino
superior. Aí também ele está preso ao
valor do estudo. Mas é preciso lembrar que aquela foi
uma época de grande crescimento econômico no
país. Uma época de estagnação
econômica reduz as possibilidades. Você pode ampliar
a empregabilidade dessa população, de tal forma
que eles tenham condições de se inserir no mercado
de trabalho. Mas uma ascensão muito rápida,
como foi o caso dos italianos, depende de condições
econômicas muito específicas daquele momento
histórico.
RAFAEL CARIELLO
da Folha de S.Paulo
|