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Paixões tórridas entre
estrelados artistas brasileiros deram lugar a uma loja de
água engarrafada e uma fábrica de salgadinhos.
Clássicos da MPB agora soam como calçados à
venda. E a boate que já foi um dos maiores inferninhos
da noite paulistana nos anos 60 está perdida numa galeria
lotada de agências de turismo.
A São Paulo que nunca pára se recicla constantemente.
Na próxima terça-feira será reaberta
a Galeria Olido, na avenida São João. O degradado
edifício terá agora três cinemas, teatro
e laboratórios de artes gráficas e digitais
-uma nova iniciativa cultural para a revitalização
da área central.
Mas o que aconteceu com os palcos das paixões e noitadas
que marcaram a geração boêmia da cidade
dos anos 50 e 60, a primeira a invadir o centro madrugada
adentro?
A maioria das casas continua de pé, mas pouco resta
dos bares, restaurantes e salas de espetáculo que abrigavam
a intelectualidade e a vida artística da metrópole
que estava sendo erguida.
Hoje, há no "centrão" uma São
Paulo ambígua: a decadente -com as ruas sujas e violentas-
e a que floresce em meio ao caos, com centros culturais moderníssimos,
como a reformada Pinacoteca, a Sala São Paulo, o Centro
Cultural Banco do Brasil e o novo Mercado Municipal.
Enquanto urbanistas divergem sobre a eficácia dos novos
empreendimentos culturais para o revigoramento da região,
a Folha percorreu o roteiro boêmio e entrevistou artistas
que viveram aqueles anos. Nessa regressão, colocou
o "centrão" no divã.
"Foi um tempo deslumbrante. Tudo estava para ser feito
e todos mostravam uma energia inesgotável", diz
a atriz Fernanda Montenegro, que se destacou logo nos primeiros
anos do TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia, meca dos
atores brasileiros na época em que São Paulo
comemorava seus 400 anos e tinha pouco mais de 2 milhões
de habitantes.
Litros de uísque
Ao lado do TBC havia um pequeno bar chamado Nick.
Tinha um piano, um pianista que sempre acabava a noite bêbado
e um picadinho de carne que ninguém esquece. E uma
portinha lateral que dava passagem para o teatro.
Foi o suficiente para virar o ponto de encontro de atores,
diretores e músicos. "Era o ninho da aristocracia
teatral, com o que isso tem de bom e de ruim. Muita gente
que freqüentava tinha idéias pseudo-hollywoodianas",
alfineta Montenegro.
Refúgio de atores iniciantes em busca de fama, o Nick
também foi palco de amores dos já famosos. Casado
com a "primeira-atriz" do TBC, Cacilda Becker, o
diretor Adolfo Celi se apaixonou por outra mulher. Era a atriz
Tônia Carrero, com quem se casou meses depois.
"Tinha tanto artista junto que as paixões se intercambiavam",
conta o ator Raul Cortez, que hoje raramente vai ao centro
da cidade de noite. No número 305 da rua Major Diogo
não há nem sinal do Nick. Nesse endereço
funciona uma fábrica de salgadinhos.
A poucas quadras dali, na frente de uma distribuidora de água
engarrafada, na rua Martinho Prado, o contrabaixista Sabá
olha para seu instrumento. Melancólico, o músico
que acompanhou Elis Regina, Johnny Alf e Dick Farney fala
das madrugadas do Baiuca.
"Depois de tocar toda a madrugada, os músicos
se reuniam num banco de jardim na praça da República."
Foi lá ele que conheceu os futuros parceiros do Jongo
Trio, que em 1964 acompanhariam Elis Regina e Jair Rodrigues
no show "Dois na Bossa", que catapultou a cantora
gaúcha à fama.
Sabá, nascido Sebastião Oliveira da Paz, acompanhou
a Folha nesse roteiro boêmio até a Galeria Metrópole,
atrás da Biblioteca Municipal Mário de Andrade.
Depois de quase 50 anos, voltou ao lugar onde funcionava o
Le Club, um dos inferninhos mais disputados por músicos
e jovens. Foi lá, por exemplo, que Plínio Marcos
exibiu suas primeiras peças.
Hoje, só o jardim continua igual. Os três andares
estão agora preenchidos por lanchonetes e agências
de turismo. "Acabou o charme da região. Você
acha que alguém viria aqui para se divertir?",
pergunta Sabá.
Dobrando a esquina, na praça Dom José Gaspar,
ficava outro ponto concorrido, o Paribar. Então uma
casa de perfil parisiense, misto de restaurante e café
com diversas mesinhas na calçada, hoje abriga uma loja
popular de artigos de couro.
A trajetória do jornalista e escritor Ruy Castro, que
investigou a boemia carioca e paulistana no livro "Chega
de Saudade", é exemplar da transformação
da região. "Quando cheguei em São Paulo,
em 1979, a época de ouro do centrão já
não existia, estava morta. O quente era a área
dos Jardins, a zona sul", lembra.
A decadência veio aos poucos. O inchaço populacional
da cidade e a expansão da mancha urbana para os bairros
e para a periferia diluíram a concentração
de atividades. O aumento do preço dos aluguéis
também afugentou moradores.
O Clubinho dos Artistas, inferninho que funcionava no porão
do Edifício Esther, na esquina da avenida Ipiranga
com a Sete de Abril, é reflexo dessa transformação.
Fundado pelo artista plástico Olavo de Carvalho, reunia
arquitetos, advogados, jornalistas e boêmios de todo
quilate.
No salão outrora freqüentado pelos pintores Lasar
Segall, Manabu Mabe e Di Cavalcanti e pelo historiador Sérgio
Buarque de Holanda, há hoje, em meio à fauna
urbana, executivos engravatados e garotas de programa.
Nos anos 70, a região central sentia a mudança
da clientela. A área conhecida como "Boca do Lixo",
nas proximidades da Estação da Luz, era freqüentada
por atores e atrizes desempregados em busca de uma ponta numa
das pornochanchadas que lotavam os cinemas brasileiros. Os
teatros mudaram-se para os Jardins, na zona sul, e logo foram
seguidos pelos bares e restaurantes.
Para o diretor teatral Maurice Vaneau, um belga que adotou
São Paulo como seu lar, a cidade nunca mais foi a mesma.
"Não havia uma procura pelo luxo e conforto, como
ocorre hoje. Quem vinha para o centro buscava uma experiência
intelectual. Agora, precisa rodar os bairros para encontrar."
O ator Walmor Chagas, que recentemente trocou São Paulo
por um sítio na Serra da Mantiqueira, afirma que a
identidade cultural da cidade mudou. "Não há
mais volta. A vida cultural noturna que acontecia nos bares
nos anos 60 se profissionalizou. A cidade precisa de novos
pólos e não viver apenas do passado."
FABIO SCHIVARTCHE
da Folha de S.Paulo
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