"Não fale com estranhos."
A tradicional orientação paterna tornou-se insuficiente
com o avanço da violência nas grandes cidades
e, hoje, vem acompanhada de uma série de outros "nãos".
Tornou-se proibido brincar na rua, ir à escola sozinho,
exibir o brinquedo novo e mesmo andar com o uniforme do colégio.
No entorno das escolas, a segurança é reforçada
com câmeras e vigias.
Diante de casos como o seqüestro de um aluno do colégio
Santa Cruz, em São Paulo, libertado na última
semana, poucos são os pais que não pensam em
implementar todas as medidas de segurança possíveis
no cotidiano dos filhos. Mas enfrentam um dilema: em que momento
a preocupação com violência ultrapassa
os limites e resulta em uma geração de crianças
neuróticas?
"Não só como profissional, mas também
como pai e cidadão, tenho a impressão de que
isso está acontecendo. O medo sempre foi uma grande
arma dos pais para "segurar" as crianças.
Mas, antes, elas tinham medo da cuca, e, quando cresciam,
viam que a cuca não existia. Hoje, o medo é
do assaltante, do seqüestrador, e eles existem",
afirma o psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos, que coordena
um grupo de atendimento a vítimas de seqüestro
no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.
Para Ferreira-Santos, um dos aspectos mais preocupantes é
o surgimento de pessoas com transtornos de estresse pós-traumático
sem terem vivido uma situação de violência
concreta. "É um estresse já anterior ao
trauma. Nesse contexto, os pais tendem a enclausurar os filhos,
como se isso evitasse alguma coisa."
A definição do limite entre a preocupação
natural e a neurose divide especialistas. Para o psiquiatra
Içami Tiba, autor de "Quem Ama, Educa!",
é melhor ser hiperprotetor do que acreditar na sorte.
"A tendência do jovem é não temer
nada. É preferível ser paranóico do que
não ter noção do perigo. Vivemos num
período de guerra", diz.
Já para a psicóloga Rosely Sayão, colunista
da Folha, a hiperproteção compromete a capacidade
da criança de aprender a se cuidar sozinha. "Nessa
sociedade atual, é muito difícil educar para
a autonomia. Mas os pais precisam lembrar que o filho vai
crescer e terá de enfrentar o mundo."
O melhor caminho, segundo a psicóloga, é apontar
os riscos para a criança e perguntar como ela agiria
naquela situação se estivesse sozinha. "Dá
para fazer isso na rua, mostrando os perigos do trânsito,
por exemplo. E, a partir das respostas da criança,
mostrar os erros dela, as distrações."
Além de comprometer a autonomia da criança,
a preocupação exagerada com a segurança
pode trazer outro dano, segundo a psicóloga Ana Mercês
Bahia Bock: incutir nas novas gerações um preconceito
ainda maior em relação às camadas mais
pobres da população. "O medo incontrolável
desenvolve o preconceito social, faz uma criança ter
medo de chegar perto de outra, que é pobre. É
preciso desmitificar que as camadas mais pobres sejam sempre
perigosas. A gente não percebe, mas essa precaução
toda em relação aos pobres é uma grande
forma de violência das camadas dominantes em relação
às mais baixas", afirma Bock, que é presidente
licenciada do Conselho Regional de Psicologia.
Para ela, é fundamental que pais e professores, além
de ensinarem a criança a se defender, discutam os aspectos
sociais por trás da violência. "Esse é
o ônus de viver numa sociedade desigual. Tem que explicar
isso para a criança."
AMARÍLIS LAGE
da Folha de S.Paulo
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