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20/07/2007
Carta da semana
Porquês tristes de uma criança que já pegou avião
"Eu me chamo Pilar Gomes Mota e tenho dois anos e quatro
meses – gostaria de avisar. Isso significa que ainda
não sei o que quer dizer "off", ranhura,
corrupção, operação padrão,
autoridade, metalúrgico, exilado, Cidade Limpa, trololó,
superfaturamento, licitação, radar, carbonizado
ou flaps. Ainda bem: sigo simplesmente meu coração.
Sei o que é a morte de uma maneira bem distante, pois,
às vezes, num desenho ou numa história de faz-de-conta,
que lêem para mim, falam dela.
Mas amo voar de avião. Amo
quando ele decola e quando ele pousa. Quando tem barrinha
de cereal, copo de plástico ou sanduíche e suco.
Gosto de mexer na luzinha do teto e girar aquele ventinho
que fica em cima da minha poltrona.
"Oi, avião da Pilar!",
gosto de dizer quando estou em Congonhas ou no Santos Dumont.
Adoro a revistinha da Gol e o desenho de massinha que aparece
na tela da TAM, avisando para afivelar os cintos. Já
sou uma mascote conhecida das aeromoças.
Aprendi a palavra avião muito
cedo. Uma das primeiras. Meu pai mora em São Paulo
e me busca de quinze em quinze dias para me levar para minha
segunda casa, na Vila Madalena. Faz isso desde que eu tinha
um ano e poucos meses de idade.
É engraçado, mas, de
uns tempos pra cá, todo mundo ri, acha fofo porque
eu já sei dizer: "o avião está atrasado,
pai". A minha maneira, infantil, de lidar com o meu avião
que nunca saía ou chegava.
Mando esse e-mail para vocês,
que são muito, muito mais velhos e experientes do que
eu. É um e-mail de ajuda. É que já estou
na idade dos porquês e do "o que é isso?".
E, como imagino que todos vocês têm filhos ou
netos que já passaram por essa fase, fico tranqüila.
1) Por que hoje no rádio do
carro do meu pai algumas pessoas falavam que “off”
qualquer piloto vai dizer pra gente que há tempos voar
em Congonhas com chuva é temerário? O que é
"off"? O que é temerário? Por que
eles não disseram isso para mim todas as vezes que
eu cheguei a Congonhas com meu pai em vez do: "prazer
em voar e tê-la conosco"?
2) Por que sempre existe um boato
de que o aeroporto está com defeito, porque uma tal
de obra foi malfeita e superfaturada? O que é superfaturada?
Não é para a obra ser bem-feita para meu avião
não quebrar?
3) O que quer dizer carbonizado? E
um corpo carbonizado? Pergunto isso porque vocês, que
já passaram por tanta coisa na vida, talvez tenham
passado por isso na família de vocês.
4) Por que o computador da empresa
de avião vermelho e branco - é assim que eu
falo para meu pai, pois ainda não sei ler - não
conseguia dizer quem estava dentro do avião pegando
fogo, mas, sempre que eu viajo, ele funciona para dizer que
vai atrasar, que vai mudar o portão, que meu vôo
foi cancelado e eu vou ter de ficar horas com meu pai no saguão
gelado? Por quê?
5) Por que vocês todos acabaram
de deixar que, provavelmente, mais de uma criança da
minha idade, mais nova ou mais velha, ficasse dodói
no avião hoje? Num mês de férias escolares?
Por que vocês não pararam tudo para evitar que
elas ficassem dodóis?
Vocês me desculpem a audácia,
ou melhor, "diculpa", que é como eu falo
de verdade. Ainda não voto, ainda não compro
passagem sozinha, não tenho um cartão de crédito,
ainda não faço boca-de-urna, ainda não
sei fazer propaganda política. Quando eu tiver dezesseis
anos, vocês não estarão mais onde estão.
Talvez eu devesse esperar para perguntar isso tudo quando
eu fosse digna para votar e ser um potencial alvo dos próximos
"vocês", ser um público-alvo de suas
promoções. Apesar de eu já ter voado
do Rio para São Paulo dezenas de vezes.
E, por ainda ter dois anos, não
sei o que é Ebitda, ações em alta na
bolsa nem quem foi Nelson Rodrigues, meu bisavô. Ele
que já disse:
"O brasileiro não
está preparado para ser "o maior do mundo"
em coisa nenhuma. Ser "o maior do mundo" em qualquer
coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma
grave, pesada e sufocante responsabilidade".
Por que será que eu tenho a
sensação de que poderia ser eu naquele avião?
E não vocês? Por quê? Um beijo de uma criança
brasileira que adora voar. Mas que é refém da
negligência de vocês todos: Estado, pilotos, companhias
aéreas.”
Pilar Gomes Mota
Texto enviado por Maurício
Rodrigues Mota - ligabrand@gmail.com
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