25/08/2006
Carta da semana
Eu tenho um Sonho
”Com freqüência me pergunto se é possível
imaginar um mundo sem qualquer tipo de religião, um mundo
emocionalmente equilibrado e intelectualmente rico. Seria um
mundo repleto de respeito pela sacralidade da vida, da natureza
e da arte, sem, no entanto, o temor por um ser sobrenatural.
A Religião ocupa o centro dos grandes conflitos de nosso
tempo. Ela inspira indivíduos a praticarem atos horrendos.
A religião seqüestra a moral continuamente. O pressuposto
de que haja uma vida melhor após a morte é muito
destrutivo. Essa idéia paralisa centenas de milhares
de indivíduos que vivem em situação de
miséria. As pessoas tornam-se religiosas especialmente
em tempos de dificuldades, em tempos em que a vida é
difícil e as perspectivas de melhora são ruins.
Contudo, quem espera uma vida melhor após a vida atual
torna-se desinteressado pela própria existência.
Em termos comparativos, indivíduos
que vêem seus fugazes setenta ou oitenta anos de vida
como um curto flamejar de consciência numa imensidão
temporal do nada têm um grau maior de responsabilidade
para com sua felicidade pessoal. Convençamo-nos do
quão maravilho é o fato de que algo simplesmente
exista, o fato de que haja algo tão fascinante como
a nossa consciência, a qual nada mais é do que
um complexo conjunto de células que nos permitem criar
e compreender nossas próprias regras e aceitar a responsabilidade
por nossa maneira de viver.
A beleza deste modo de pensar é
o entender que o mundo é tão rico como sempre
foi! Nós sabemos agora muitas coisas sobre a seleção
natural, as mutações casuais e o desaparecimento
de espécies. Sabemos também como os vírus
podem transmutar-se e como nós nos desenvolvemos enquanto
seres humanos. A história da evolução
deveria dar vazão a um sentimento de admiração,
pois ela desenvolveu-se sem um sentido superior.
Da Idade da Pedra até às
culturas modernas há surpreendentes reciprocidades.
A condenação do roubo, do assassinato e da cobiça
da mulher do próximo está presente em toda parte.
Não precisamos da religião para sentir vergonha,
piedade, acanhamento e ira. Tais sentimentos foram para nós,
enquanto seres sociais, de importância fundamental para
garantir a sobrevivência na comunidade.
Naturalmente, eu também conheço
a tentação de ver na religião uma força
descomunal. Afinal, a fé inspirou muitos indivíduos
a produzirem obras inigualáveis. Eu escuto com prazer
as cantatas de João Sebastião Bach, as quais,
com a melancolia nelas embutidas, deixam-me boquiaberto. Eu
gosto imensamente de entrar em igrejas vetustas e atualizar
minha busca quase onírica na arquitetura gótica.
Eu tenho um grande respeito pela arte que traz um impulso
religioso em si.
Todavia, é absolutamente possível
viver sem qualquer relação com o sobrenatural
e, ao mesmo tempo, ter sentimentos oceânicos diante
de uma paisagem, dos pêssegos de Cézanne ou do
inacreditável êxtase duma paixão fresca.
Essas grandes, nobres sensações nada têm
a ver com sentimentos religiosos. Elas originam-se espontaneamente.
Estou ciente de que todos nós
necessitamos de consolo. Por um instante, logo, falemos de
como o mundo é, não de como ele poderia ser.
A morte é talvez o maior desafio. Mas uma fé
que se baseie no medo tem um fundamento fraco. Mesmo os mais
convencidos cristãos choram em velórios, pois
sabem, lá no fundo de seus corações,
que não há eternidade. Até o padre possui
essa intuição.
Há muitas religiões
diferentes, as quais se baseiam em escritos antiqüíssimos,
mas cujo conteúdo é divergente. É Cristo
o filho de Deus? Sim, dizem os cristãos; não,
dizem os muçulmanos. O pão e o vinho distribuídos
durante a missa são de fato a carne e o sangue de Jesus
Cristo? Pune Deus, a partir das alturas, indivíduos
que não seguem seus preceitos? Há um inferno?
Nossa imaginação a respeito de Deu é
largamente obtusa.
Se de repente o céu se abrisse
diante de meus olhos e uma figura gigante separasse as nuvens
e se dirigisse à humanidade, eu ajustaria, neste caso,
minhas convicções aos fatos.
Eu não me sinto obrigado a
esboçar como um mundo sem religiões poderia
ser. Há muito ódio no sentimento religioso e
isso diminui minha esperança de um mundo sem conflitos.
Se alguém houvesse falado há vinte e cinco anos
atrás que a religião se tornaria uma das forças
motrizes dos conflitos internacionais, eu não teria
acreditado.
Provavelmente teremos de admitir que
a religião é uma espécie de instinto
que temos. Todas as culturas acreditam em algum tipo de forças
sobrenaturais. Porventura havia nessa atitude uma vantagem
que garantia a sobrevivência.
Podemos sonhar à vontade, mas
uma coisa é certa: não é possível
banir a religião da sociedade. A história européia
do século vinte mostrou-nos tal realidade de forma
dolorosa. Examinemos o Estalinismo, o qual pretendeu erradicar
a religião completamente. Não posso afirmar
de forma alguma que todos os ateístas sejam "inocentes".
Ao mesmo tempo, nutro um grande respeito por pensadores, os
quais têm um pé no mundo da poesia e da arte
e o outro no discurso racional do cepticismo científico.
Jamais veremos um grupo de cépticos a descer a rua
incendiando carros. Pelas suas convicções, eles
tão pouco tiram vidas ou seqüestram indivíduos.
Se existisse um partido político
que tivesse como objetivo implementar minhas reflexões
oníricas, ele se chamaria Partido do Cepticismo Democrático.
Ele verificaria qualquer idéia/ideologia em sua raiz
e decidiria se ela realmente poderia ser tomada como verdade.
Isso é um questionamento
que nós, num ritmo crescente, nos esquecemos de fazer”,
Originalmente escrito por
Ian McEwan (Alemanha). Tradução de Francisco
M. da Rocha.
Marcus Tullius Cícero
- tullius@europe.com
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