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16/06/2006
Carta da semana
A riqueza da pobreza
“Nas minhas andanças pelo Brasil, com a alma
já muito amolada pela dor pungente da saudade pelo
país, pois já vivo há treze anos na Itália,
consigo ”fotografar" (sem o uso da máquina
fotográfica) instantes de poesia cotidiana completamente
ignorados, desconhecidos pelos transeuntes de turno, habitados
e entorpecidos com as cenas de um cotidiano tão comum
e para eles sempre igual.
Como não notar, pelo amor de Deus, o pai que leva as
crianças pequenas à escola numa caixa de frutas,
colocada "artisticamente" sobre uma simples bicicleta?
Como não notar o passeio dominical de uma inteira família,
pais e filhos, sobre as duas rodas daquela simples e surrada
bicicleta? Como não notar os repentistas nordestinos
realizando o milagre da criatividade humana dentro dos coletivos
de Recife, diante de olhos já tão saturados?
Como não notar a luta digna e nobre daqueles trabalhadores
autônomos, que tentam ganhar o pão de cada dia
vendendo bugigangas dentro dos ônibus urbanos?
Como não notar as roupas do domingo que os pobres ainda
vestem com aquele orgulho e extrema pureza? Como não
ouvir as respostas emocionadas e emocionantes dos mendigos
depois de receber uma esmola? Como não notar a beleza
profunda dos parques públicos recheados pela pobreza
dos domingos? Como não notar os piqueniques dos pobres,
vistos como cafonas e farofeiros pelos ricos? Como não
se emocionar com a coragem e a ousadia dos pobres de desafiar
a vida e suas dificuldades, fazendo os filhos que os ricos
quase não querem mais fazer? Como ficar insensível
e cego à passagem pelas ruas de famílias catadoras
de lixo e suas carroças decoradas para, além
do lixo, transportarem também os próprios filhos?
Como não enxergar aleijados dando lições
de dignidade enquanto lavam carros usando uma mão só,'
ou sobem nos ônibus arrastando-se através de
um corpo sem pernas? Como não perceber, meu Deus, cadeiras
de rodas adaptadas ao comércio ambulante nos semáforos
das cidades, ensinando resistência e coragem aos privilegiados
amorfos e refrescados pelos condicionadores dos carros? Como
não ver o sorriso em cada vida amputada que resiste?
Como não se emocionar ou revoltar diante de tanta injustiça?
Como não reagir diante de pés descalços
sujos e rachados que ainda conseguem sorrir? Como não
devolver nada aos pobres pelas suas descaradas e viscerais
lições de vida gratuitas e ao vivo em cada canto
deste imenso país? Como achar "comum" ou
"normal" a enorme dignidade da pobreza? Como é
vergonhosa a perpetuação do "madamismo
brasileiro", que se alimenta da exploração
para viver no cabeleireiro, no spa, nos shoppings, manicures
e pedicures!
Ah, como seria interessante se houvesse um intercâmbio
maior entre os "primeiros" e "terceiros"
mundos deste planeta. Como seriam proveitosos alguns estágios
sem data de retorno, para mentes obtusas, tão largamente
disseminadas, que crêem na superioridade de algumas
sociedades sobre outras. Como seria, ou como é fundamenta,l
viver um exílio forçado para se criar profundamente
uma consciência de cidadania e uma lucidez imprescindível
para se olhar o próprio país, a própria
terra. Quantos fantasmas desmascarados, quanta ilusão
desfeita, quanto amor descoberto, quanto orgulho ensinado,
quantas mentes abertas, quanto cidadão despertado e
quanto resultado.
Estou à procura de poesia na Itália, onde ainda
"vivo". Acho que a distribuição mais
justa da riqueza varreu o que a pobreza tinha de melhor ou
de mais humano. Varreu os sorrisos, varreu as emoções,
varreu as roupas do domingo, varreu os piqueniques dos parques
nos feriados, varreu os sonhos e os ideais, varreu o amor.
Restaram os celulares, os metrôs cheios de anônimos,
o glamour do falso que tanto fascina, a moda que tanto determina,
os carros que são mais numerosos que os seres humanos,
as ambições e tanta, mas tanta solidão...
No Brasil, apesar de já' tão largamente difusa,
essa riqueza, graças a Deus, ainda não varreu
os pobres da face deste país. Porque graças
a eles ainda resiste o sorriso, as cadeiras do lado de fora
das casas nas periferias, as roupas especiais dos domingos,
um jeito mais leve de ser, um coração mais aberto
e transparente, um "Deus te abençoe" depois
de uma esmola dada, uma fatia de bolo com café de tarde
na casa do vizinho, um favor que ainda se pode pedir, os repentistas
artistas, uma alegria que consegue resistir, uma teimosia
em viver que é lição de vida, uma natalidade
que desafia uma mortalidade - não só' demográfica,
mas es-pi-ri-tu-al. Coisa que aqui acabou, na Europa dos sonhos
de tantos ingênuos, inocentes ou desinformados. Não
sabem eles o que essa mesma Europa faz de nossos sonhos: esmaga-os.
E esmagando os nossos sonhos, esmaga-nos. O que nos resta?
A saudade e a dor. O luto. E a raiva. Uma raiva imensa por
não termos sido capazes de enxergar em tempo o nosso
país, a nossa terra e sua sacralidade; pois o lugar
onde nascemos, crescemos, aprendemos a ler, a falar, a andar,
a amar e a viver, bem ou mal que seja, é sagrado. E
todos temos o dever de respeita-lo.
É por tudo isso que vale o exílio, apesar de
tudo, apesar da dor, apesar da saudade. Exílio é
escola de cidadania, mas sobretudo é escola de amor
e de descoberta da própria sagrada origem. É
através dessa dor que nascem novos homens e novas mulheres,
novos cidadãos brasileiros. Ao menos se espera que
seja assim, mesmo que sejam uma minoria. O importante é
que sejam verdadeiros cidadãos, que tenham feito do
exílio escola de vida e não de morte. Morte
de si mesmos no labirinto da identidade oscilante, “doença"
tão comum aqui fora.
Paradoxal que seja, ridículo que possa parecer, esnobe
ou banal, quanto faz falta essa pobreza por aqui. Quanta falta
faz, e ai quase ninguém percebe”,
Ana Claudia Pinheiro Teixeira,
Itália - amazonas@tiscali.it
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