|
30/06/2006
Carta da semana
CORDEL DO CEGO E DO SEU GUIA
“Sou apaixonada pela Literatura
de Cordel e por causos políticos de antigamente. Tenho
um grande material arquivado e psicoticamente guardado. Estava
fazendo uma releitura e vi muita coisa interessante. Percebi
que naquela época, fatos que vivemos hoje já
tinham sido relatados. É uma forma de aprendizado.
Se déssemos mais atenção ao passado de
certo teríamos mais lucidez no presente para definirmos
o futuro. Os causos e cordéis relatam, com sinistra
precisão, as mesmas lambanças que vemos hoje.
Em virtude disso, resolvi que de hoje até as eleições
vou publicar, pelo menos duas vezes ao mês, alguns causos
selecionados.
Vamos lá.
Olhe bem, preste atenção, na saga de um pobre
cego que traído por um guia, se acabou sem alegria,
de desgosto e aflição:
Lá na cidadezinha, bem no meio do sertão, vivia
sozinho o cego, sem companhia nem mesmo de um cão,
já que não podia dividir o dinheiro que conseguia
de esmolas trabalhando o dia inteiro. Por não ter guia
o cego, vivia aos esbarrões, nas paredes e nos postes,
e também nos cidadãos. Ainda tinha que agüentar
a mangação da gurizada, que não lhe tinha
respeito, muito menos compaixão.
Um dia indo pra casa, tendo atrás a gurizada, apareceu
lá um forasteiro, pra o livrar da confusão.
Tomado por gratidão, pela ação do estranho
amigo, o cego agradecido perguntou por que assim tinha o outro
agido, e com tanta decisão:
- Eita, que é que tu faz aqui?
- Vim em busca de vida melhor, uai.
- Aqui? Arri égua! E vai fazê u quê?
- Procuro trabalho, uai! Vou juntar dinheiro com esforço,
e ajudando meu novo amigo, farei o que for preciso pra me
mandar pra capital. Quero subir na vida. Só preciso
de uma chance, e vi você cego amigo, que precisa de
um ajudante. Vive como, amigo cego? Precisa de alguém
que o auxilie. Arrumo um trabalho em umas horas, nas outras
viro seu guia. Espanto a molecada, pra nunca mais te amolar,
apenas peço em troco um lugar pra me abrigar.
O cego aceitou na labuta, o rapaz agora amigo, que aos poucos
lhe contava o que fez, mas nem tudo o que faria. Parecia um
bom moço, muito bem intencionado, dizia querer crescer,
sonhava ser diplomado. Estudar e virar dotô, queria
ter uma família, seu sonho de enriquecer era tudo o
que o seguia. O cego tinha apreço pelo sonho do rapaz,
mas percebia que ele estava um jovem ambicioso demais.
-Ocê fique calmo cego, que hei de vencer na vida, afinal
vou trabalhar e nada resiste ao trabalho. Como a ambição
era demais, o jovem mentia ao cego, escondia nas suas tralhas
as esmolas do incapaz.
Os dias foram passando e o rapaz guiando o cego, nas esquinas
iam passando, e o rapaz roubando o cego. O cego se encafifou,
não via o dinheiro que pedia, via pelo contrário,
que quase tudo se esvaia.
Um dia surgiu como o outro, e o cego se viu carente, o rapaz
chegou e disse tudo muito de repente: vou-me embora pra cidade,
economizei e posso ir, vou em busca da riqueza, vou e hei
de possuir. Agradeço o seu abrigo, mas daqui pra frente
eu sigo só.
O cego ao receber a notícia da partida do rapaz sentiu
orgulho e aperreio por tão fiel amigo. Sentiu orgulho
por achar que tinha colaborado com o jovem, mas sentia o seu
íntimo que espremia o coração. Podia
ser cego, pobre e sem estudo, mas tinha uma clara noção,
de princípios e honestidade e uma aguçada intuição.
O cego sabia o quão era difícil obter tanto
dinheiro, sabia que em tão pouco tempo não daria
pra juntar.
Pobre o cego ficou, pobre e triste o coitado, não tardou
a descobrir, que durante aquele tempo o amigo, que pensara
ser amigo, era de fato um safado, que roubara o que ele poupara.
Foi um golpe mortal no infeliz! O cego à melancolia
morreu de desgosto e de dor.
Mas, o jovem foi em frente, com o dinheiro surrupiado, ele
chegou radiante e de pronto se arrumou. Pôs-se a procurar
um lugar, pra novamente se escorar. Estudou, formou e virou
dotô e preparou pra se arrumar. Com muita base e estilo
foi lecionar para jovens, e ao invés de ensinar a moral,
ria e contava do cego. Abestados os alunos da capital, achavam
aquilo engraçado, já que o inteligente e astuto,
enganava sobre o que era moral. Era de fácil amizade
e logo se estabeleceu, mas por trás de tudo isso havia
outros cegos pra envolver. Não cegos de visão,
mas cegos de compaixão, que caiam na lábia tão
fácil, do rapaz enrolador.
Em pouco tempo o forasteiro conquistou a sua glória
sonhada, e o povo se admirava com a luta do rapaz. Mudou de
vida, isso é fato, mas no lugar de família,
construiu um império podre, pois vinha inteiro lastreado,
na exploração de outros mais. O episódio
do cego primeiro, que parecia uma pequena traquinagem, na
verdade era um problema maior, de um grande mal caráter
e embusteiro. O cego tinha razão em toda sua aflição,
o rapaz não tinha noção do que era ter
moral. Na verdade tinha vigarice nas entranhas, e isso não
tem solução.
Nessa perversa mente fica triste a conclusão, a deturpação
de conceitos é tamanha, que ele chegava a se orgulhar
ao contar que enganara o cego que antes lhe dera abrigo. É,
mas temos que admitir que se tornou um vencedor e que agora
no lugar de um cego, tem o povo da cidade vendo, mas cegos
a trabalhar pro bom rapaz.
Pobre País que segue não mais deitado em berço
esplendido, mas segue cego, na labuta diária para bancar
a boa vida de ladrões”,
Adriana Vandoni - avandoni@uol.com.br
|