Faculdades de direito alugam bibliotecas
apenas para enganar os fiscais do Ministério da Educação
-terminada a vistoria, os livros são devolvidos. A
informação sobre esse inusitado aluguel é
do presidente seccional paulista da OAB (Ordem do Advogados
Brasil), Luiz Flávio D'Urso, que está alarmado
com a qualidade dos alunos formados em cursos de direito.
"Sabemos de faculdades que usam cinemas velhos e até
plenários de Câmaras municipais", diz.
Detalhes desse tipo ajudam a explicar por que o exame exigido
pela OAB para a prática profissional revela um escândalo.
Neste ano, em São Paulo, o índice chegou aos
87% de reprovação. Na prática, os reprovados
alugaram diplomas.
Na segunda-feira passada, em entrevista à Folha, o
cardiologista José Antônio Ramires, diretor do
Instituto do Coração, em São Paulo, defendeu
a aplicação de exame semelhante aos formados
nos cursos de medicina. Apenas expressou uma inquietação
de sua categoria, que anda temerosa de que a propagação
sem critérios das faculdades esteja produzindo profissionais
desqualificados. "Apanham-se médicos, muitas vezes
sem formação educacional adequada, e eles passam
a dar aulas", ataca Ramires.
Certamente, se os critérios impostos pela OAB se disseminarem
pelas demais categorias, o escândalo não ficará
restrito aos advogados. Seria um ótimo e pedagógico
choque para o país; muito mais dolorido e profundo
do que aquele já visto com as atuais avaliações
do ensino fundamental, médio e superior.
O que se vê no exame da OAB é absolutamente
previsível; a rigor, nem deveria provocar escândalo.
Existe uma cadeia de irresponsabilidades, omissões
e fragilidades que explicam essas deficiências.
Na semana passada, uma pesquisa realizada com base no Saeb
(Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Básica) mostrou que o envolvimento da família
é extremamente relevante no desempenho escolar dos
filhos. Em geral, as famílias de maior poder aquisitivo
têm disposição para esse tipo de envolvimento.
Traduzindo: a batalha já começa a ser perdida
em casa.
A derrota prossegue na escola. Um levantamento feito pela
Unesco mostrou o seguinte: 45% dos professores nunca foram
ou foram só uma vez a um museu; 40% nunca foram ou
foram só uma vez ao teatro; 3) 25% nunca foram ou foram
só uma vez ao cinema. Cerca de 60% deles não
têm e-mail nem usam a internet.
Deixemos de lado o professor e vejamos os jovens entre 15
e 24 anos, segundo pesquisa nacional realizada pelo Instituto
de Cidadania: 62% nunca foram ao teatro; 39% nunca foram ao
cinema; 69% nunca foram a um museu; 52% nunca foram a uma
biblioteca fora da escola.
Se os alunos, além de não contarem com estímulo
cultural e educacional da família e dos professores,
não lêem livros, não vão ao teatro,
não freqüentam museus, por que, afinal, conseguiriam
ter um bom desempenho escolar? Até porque os próprios
professores, como mostra a pesquisa da Unesco, não
são tão diferentes assim de seus alunos.
É óbvio que o desempenho do aluno depende não
só do que aprende em sala de aula, mas, sobretudo,
da bagagem cultural que o habilita a lidar pelo resto da vida
com o conhecimento.
Não se vai sair do lugar se os governantes imaginarem
que a melhoria da educação depende só
de investimentos em sala de aula.
É escancaradamente óbvio que se devem tirar
os estudantes da sala e incorporar ao currículo escolar
o acesso permanente à vida cultural. Isso significa
que, desde bem pequenos, os alunos têm de estar, acompanhados
de seus professores, nos cinemas, nos teatros, nos museus,
nas bibliotecas, nos parques. Devem ser utilizados em sala
de aula programas de televisão de qualidade, assim
como jornais e revistas aliados ao currículo tradicional.
A rigor, as secretarias da Educação e da Cultura
deveriam constituir um só departamento, ao qual coubesse
a tarefa de transformar a cidade em espaços cotidianos
de aprendizado. E mais: sempre envolvendo a família.
Sempre.
Nada disso implica mais dinheiro. Não se está
pedindo que se construam prédios. Apenas que se use
melhor o que já está disponível e que
se treinem melhor professores e diretores para ampliar os
horizontes do conhecimento.
Por que, afinal, não se condiciona a aprovação
de benefícios fiscais a produções culturais
à oferta de ingressos a alunos de escolas públicas?
No dia em que acharmos que a educação é
a prioridade das prioridades, perguntas óbvias desse
tipo serão somente ridículas -assim como bibliotecas
de aluguel.
PS - Daí que se pode medir a qualidade de um candidato
a prefeito pelo que ele propõe para a melhoria de creches
e pré-escolas. Todos os estudiosos sabem que a infância
é a fase vital que vai determinar, pelo menos em parte,
o desempenho educacional de um indivíduo. Se quiser
medir o grau de civilidade de uma comunidade, basta verificar
quantas crianças de zero a seis anos recebem atendimento
digno.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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