Não se tem notícia
de um objeto de design que houvesse obtido tamanha popularidade
em São Paulo a ponto de se transformar em personagem
da boemia intelectual paulistana. Como bom personagem, a peça
virou, neste ano, tema de um livro escrito por pessoas que
privaram de sua intimidade.
Chico Millan e Maria Cecília Gregori (Ticha), proprietários
do bar que leva o nome da peça, quando fizeram a encomenda
do inusitado balcão aos arquitetos Paulo Fecarotta
(Fino) e Nando Millan, não suspeitavam que fossem acabar
se rendendo aos caprichos do móvel.
A idéia era fazer que o balcão de 54 metros
de comprimento formado de pranchas ovais serpenteasse todo
o salão do bar como se fosse uma extensão da
rua. "Subverteram a ordem", constata Chico. Os clientes
passaram, com o tempo, a sentar-se dos dois lados do móvel
e se criou um clima sensualmente tribal, todos em roda. Quem
fosse ali sozinho logo se sentiria em grupo. É claro
que o nome do lugar só podia ser Balcão -assim
como o título do livro recém-lançado
em comemoração dos dez anos daquele design.
O livro não conta, mas aquele balcão, testemunha
na madrugada de tantos casamentos decadentes e de paixões
ascendentes, quase não nasceu. Estava chegando o final
do ano e o marceneiro Zeca Cury, que morava em Ubatuba, preparava-se
para viajar, ritual que lhe era sagrado. Foi quando recebeu,
por fax, o estranho desenho do móvel. Em sua marcenaria,
nem havia espaço para executar a obra. "O jeito
foi usar um campo de futebol", lembra-se Zeca. Por coincidência,
estava havia anos armazenado em seu galpão um lote
de pranchas de angelim-pedra.
Quando esse projeto saiu do papel, há dez anos, São
Paulo assistia a níveis de violência desconhecidos
até então. Era o início da epidemia do
crack e dos seqüestros. Um bar no qual todos se sentassem
juntos, de portas escancaradas, transformou-se involuntariamente
numa espécie de ato de resistência numa cidade
cada vez mais murada, com seus seguranças privados,
condomínios fechados e automóveis blindados.
Uma São Paulo cada vez mais repartida e violenta fez
de uma despretensiosa mesa o projeto não de um bar,
mas de uma cidade em busca de um balcão para reuni-la.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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