Sofia nasceu às 19h57, em
24 de abril de 2001, e foi direto para a UTI. "Tive vontade
de me levantar daquela maca com a barriga aberta e ir atrás
dela", recorda-se a mãe, Maria Miele, uma terapeuta
corporal especialista em massagem chinesa.
No dia seguinte, em seu quarto de hospital, Maria, confiante,
se recompunha do trauma. "Pensava secretamente que tudo
não passava de um mal-entendido. Minha genética
familiar era tão forte e perfeita que, obviamente,
minha filha sairia dessa muito bem e rápido."
"Eu não sabia de nenhuma previsão futura,
nem sabia quando seriam as cirurgias. Não sabia como
seria a vida dela, não seria sabia qual dos tantos
sentimentos contidos dentro de mim seria mais útil
para nós duas. E sem saber que caminho tomar, optei
pelo único sentimento possível e que nunca seria
demais sentir: o amor incondicional."
A primeira cirurgia ocorreu quando a criança tinha
dez dias de vida. "O tempo não passava, meu estômago
estava enrijecido. Enquanto eu e meu marido ( Luís)
caminhávamos pelas ruas próximas da maternidade,
eu via as pessoas almoçando, sorrindo, caminhando com
pressa."
Em dezembro, véspera de natal, Sofia ainda estava
na UTI, diagnosticada com insuficiência renal, infeção
generalizada e falência múltipla dos órgãos.
Talvez, imaginavam os médicos, não sobrevivesse
até o reveillon. Sobreviveu. "Cruzamos a porta
da UTI e passamos toda a noite com ela no meu colo. Nós
duas estávamos vestidas de branco."
"UTI é o lugar mais horrível para se estar.
É um lugar que testa violentamente os limites humanos
daqueles que a habitam diariamente, minuto a minuto. Ali são
testados mães, pais, médicos, mesmo os mais
experientes."
" É muito difícil ter um filho na UTI.
São momentos solitários, nos quais você
tem de aprender a lidar com seus limites, sua impotência,
seu egoísmo, além de tentar determinar sinceramente
até onde você será capaz de ir."
"É conviver com o medo 24 horas por dia. É
sentir o coração disparando cada vez que você
chega e só senti-lo bater ritmado depois de pousar
os olhos em seu bebê e ter certeza de que está
tudo bem. Medo da perda, medo da piora, medo do futuro incerto,
medo do presente. Medo da própria capacidade de suportar
as notícias."
Apesar de todos os prognósticos, Sofia melhorou -
e Maria se sentiu livre dos medos. "Nem estamos acreditando",
disse uma das médicas a Maria. "Voei para a UTI,
que estava em festa. Às 15h30, de 9 de maio de 2002,
um ano e um mês do nascimento, enfim a chegada em casa.
Enquanto entrava pela porta, agarrada à criança,
chorava e repetia: " Não acredito, não
acredito."
"Eu me sentia mãe de verdade após mais
de uma ano de espera. Poder acordar no meio da noite e ir
beijá-la, dar seu banho dentro do quarto, e não
mais na UTI, cantar para ela segurando-a em meus braços."
No início de julho, porém, Sofia já
estava de volta ao hospital e, mais uma vez, na UTI. "Voltei
para casa arrasada, parecia que eu carregava um piano nas
costas".
No dia 30 daquele, o hospital chamou a família. Sofia
tinha piorado. "Entrei tremendo na UTI."
Acompanhada de Luís, ela colocou a filha entre os
braços. "Toda a equipe se retirou num ato de respeito.
Foram para trás de um vidro onde ficava o monitor central."
"Meu marido se levantou e saiu. Ela fria, nos meus braços,
não estava mais lá, eu simplesmente não
a sentia. Como um pássaro leve, tinha voado, sem barulho,
sem alarde. Passou para algum lugar, e a porta se fechou,
me deixando aqui sozinha."
P.S- O que você, leitor, acaba ler estava previsto
para nunca ser lido. Para enfrentar a dor, Maria Miele escreveu
sua experiência de 13 meses em três hospitais
em São Paulo (Incor, São Luiz e Samaritano).
Esse misto de diário com reportagem era para ficar
trancado numa gaveta. Mas ela aceitou publicar sua história,
intitulada "Mãe de UIT", a ser lançada
pela editora Terceiro Nome no próximo semestre, por
ter descoberto que não havia um livro para ajudar mães
que vivessem semelhante situação. Neste mês,
Maria começou a percorrer hospitais para formar grupos
de mãos cujos filhos estão em UTI e não
têm, na maioria das vezes, com quem compartilhar sua
dor e solidão. "As dores e saudade não
diminuíram, nem a memória apagou tudo o que
eu presenciei, mas com o passar do tempo, comecei aprender
a lidar a melhor com tudo isso; o passado não muda,
mas, de certa forma, tudo acaba mudando com tempo", diz
Maria.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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