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Numa pequena sala, de móveis
de fórmica, com um computador antigo, F.C.L., 29, discutia
em São Paulo, na quinta passada, um meio de recuperar
três anos de salário não pagos por um
ex-patrão. À sua frente, a advogada Ruth Camacho,
que o ouvia em silêncio, sabia que, apesar da justeza
da causa, não dispunha de instrumentos legais para
ajudá-lo. "É triste", lamenta ela.
Não foram quaisquer três anos perdidos. F.C.L.
começava a costurar, na oficina de roupas, às
6h e, quase sempre, terminava apenas às 24h. Morava
ali mesmo onde produzia as peças, amontoado, no andar
de cima, com mais 25 trabalhadores. Por causa da clandestinidade,
o espaço tinha pouca iluminação e ventilação.
Muitos caíam doentes, vítimas de tuberculose;
logo eram descartados, jogados na rua. A sobrecarga de atividades
repetitivas ia gerando um brutal estresse, visível
em surtos de agressividade ou insônia. "Eu tinha
o hábito de espancar minha mulher e não entendia
por que não conseguia controlar a raiva", conta
M.G., casado com a irmã de F.C.L. "Depois entendi
que tudo aquilo estava me enlouquecendo." Os três
viviam na oficina. "Era duro ver minha irmã apanhando."
Há testemunhas de que F.C.L. nunca deixava de entregar
o serviço; uma dessas testemunhas o acompanhava na
visita à advogada. Mas pouco pode ser feito legalmente
para recobrar o dinheiro: a vítima vivia em regime
de semi-escravidão.
Não se sabe o número exatamente, mas se estima
que a cidade mais importante do país tenha, neste começo
de milênio, mais de 30 mil trabalhadores em regime semelhante
ao da escravidão - e isso apenas na indústria
têxtil, nas regiões centrais, próximas
das mais diferentes esferas do poder. "É comum.
E, pior, esse número vem aumentando", informa
Ruth Camacho, que vê passar pela Pastoral do Imigrante,
onde presta serviço, muitos latino-americanos, especialmente
bolivianos.
Por falta de documentos, eles aceitam qualquer emprego e são
obrigados a trabalhar, em média, 16 horas por dia,
sem nenhuma proteção, muito menos judicial.
Não querem aparecer porque temem ser deportados; daí
o uso apenas de suas iniciais nesta coluna.
Nem sempre eles aceitam pacificamente a exploração.
Jorge Meruvia não suportava mais as pressões
e, certo dia, quebrou a oficina em que trabalhava. "Explodi",
diz. Ele não se importa em dar nome e sobrenome porque
conseguiu legalizar sua situação e se tornou
um líder comunitário dos bolivianos. "Digo
que eles vivem quase como viviam os escravos."
Esses indivíduos constituem uma espécie de
parábola das contradições de São
Paulo em particular e do Brasil em geral. São a face
clandestina e tenebrosa de uma cidade que se orgulha de suas
vitrines da moda e das exuberantes modelos que desfilam nas
passarelas da Fashion Week.
A julgar pelo número estimado de oficinas clandestinas
e pelo vigor da produção, não é
exagero dizer que milhões de brasileiros andam ou andaram
com alguma roupa que carrega um rastro de trabalho semi-escravo.
Nas entrevistas que fiz com vários desses imigrantes,
eles contam que fazem parte da cadeia de produção
de roupas sofisticadas, de grife, expostas nas lojas mais
concorridas do país.
A medida de nossa incivilidade está na aceitação
desse tipo de exploração. Se essa denúncia
fosse feita na Europa ou nos Estados Unidos, haveria ameaças
de boicote dos consumidores e as empresas montariam sistemas
de fiscalização para conhecer melhor quem ajuda
na confecção dos seus produtos.
A falta de ação começa entre as autoridades.
Fui informado de que o ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini,
está ciente das condições degradantes
em que vivem os imigrantes, assim como estão cientes
do problema funcionários do segundo escalão
do Ministério da Justiça.
Bastaria que se ratificassem medidas, já decididas,
que garantem o direito dos imigrantes de países do
Mercosul, além do Peru e da Bolívia, para que
todos tivessem direito à legalização.
Só isso.
O problema é que nossa longa herança escravagista
deixou uma profunda marca em nossa mentalidade. Daí
aceitarmos tão calmamente a informalidade selvagem
no mercado de trabalho -e nem os sindicatos estarem empenhados
em encontrar uma solução realista. Os imigrantes
sem documentos, vivendo como escravos numa cidade de imigrantes,
são apenas a ponta dessa crescente informalidade.
PS - Outro sinal de permissividade está nas esquinas
das grandes cidades brasileiras, a começar de São
Paulo. Vemos diariamente crianças trabalhando nos semáforos,
exploradas, na maioria das vezes, por adultos. É inacreditável
que, apesar de o abuso ser tão escancarado, à
luz do dia, quase ninguém faça nada para coibi-lo.
Sabemos que existem quadrilhas que transformaram isso em indústria.
Quando damos esmola, pensando fazer o bem, estamos apenas
perpetuando essa exploração perpetrada pelos
adultos. Como estamos em época de eleições,
vale a pena prestar atenção. Em Porto Alegre,
por exemplo, onde se lançou a seguinte campanha: "Dê
futuro, não dê esmola", os motoristas são
convidados a ligar para um departamento público e a
pedir um assistente social.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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