Na falta
da visão, eles se orientavam pelo tato e olfato para
buscar o melhor enquadramento para as fotos
Um grupo de oito deficientes visuais, todos de bengala, caminhava
em meio ao burburinho do Mercado Municipal de São Paulo
à procura de um ângulo para registrar a profusão
de cores espalhadas nas frutas, legumes e verduras. Na falta
da visão, eles se orientavam pelo tato e olfato para
buscar o melhor enquadramento.
À frente dessa aventura sensorial está João
Kulcsár, um engenheiro-mecânico que abandonou
a profissão para se dedicar ao que ele chama de "alfabetização
visual". Iniciou suas experiências colocando máquinas
de fotografar nas mãos de crianças de rua do
centro de São Paulo. À frente de João,
existe um professor de história que, nos tempos do
cursinho pré-vestibular, o encantou para as questões
sociais brasileiras e, sem saber, o inspirou a trocar a engenharia
pela fotografia. Nessa troca, acabou em um dos mais férteis
programas de inovações educacionais, chamado
de Projeto Zero, em Harvard, onde descobriu que qualquer um
poderia aprender nas mais estranhas situações.
O resultado dessa teia de influência estava imperceptível
por trás da exposição lançada
na semana passada, com as imagens tiradas pelos deficientes
visuais, intitulada "Percepção do Visível"
. Como se consegue ir tão longe, a ponto de um cego
se sentir habilitado a tirar fotos? Nessa resposta está
certamente um, entre tantos, dos segredos do alto desempenho
profissional e acadêmico.
Uma pista para essa questão foi dada, na semana passada,
pelo mais importante brasileiro que investiga o funcionamento
dos cérebros. Suas suas descobertas -ele fez um macaco
movimentar um jogo de computador sem as mãos- são
consideradas uma das grandes contribuições atuais
da neurociência para ajudar as pessoas vítimas
de paralisia a se locomover. Conversando com um grupo de estudantes,
Miguel Nicolelis disse: "Sou pago para ser criança".
Assim ele explicava a uma silenciosa platéia, ao apresentar
o livro, feito com Drauzio Varella, chamado "Prazer em
Conhecer" o livro é a transcrição
de uma conversa em que eles falavam sobre como aprenderam
o que sabem. Nicolelis transformou os segredos do cérebro
em sua paixão e hoje ajuda crianças do Nordeste
a se encantar pelas ciências. Drauzio mergulha com a
mesma intensidade na bioprospecção da Amazônia
com que mergulhou na vida do Carandiru, já desativado,
ou nas pesquisas sobre a Aids -por causa da força dos
veículos de comunicação em que trabalha,
combinado com o gosto de ensinar, ele é o mais importante
educador de saúde de toda a história do Brasil.
Para chegar aonde chegaram, não bastou só a
vontade de desvendar mistérios ou terem estudado em
boas escolas -assim como não bastava o interesse para
que os cegos tivessem uma improvável câmara fotográfica
na mão. Nicolelis e Drauzio contam que houve pessoas
fundamentais que deram um rumo às suas curiosidades
é como se fossem chaves que deram a partida do motor.
Os dois apenas reforçam os depoimentos que venho colhendo,
inicialmente em parceria com a Fundação Carlos
Chagas, de pessoas que se destacaram em suas atividades. Entre
outros, estão na lista Maurício de Souza, Adib
Jatene, Ziraldo, Fernanda Montenegro, Nando Reis até
gente que saiu da periferia e ficou célebre como Seu
Jorge ou Rappin Hood. Todos têm uma história
para contar de alguém que os ajudou a moldar sua curiosidade
-Gabriel Pensador detestava escrever até que conheceu
uma professora de português; Esmeralda Ortiz descobriu,
na rua, a poesia e deixou o consumo e o tráfico de
crack para entrar na faculdade e escrever livros.
Se talvez exista aqui uma pista sobre o alto desempenho profissional
de determinadas pessoas, certamente há uma explicação
sobre a dificuldade dos pobres em ter prazer em aprender -raramente
eles encontram em suas casas e escolas seres guiados pela
paixão do mistério, que coloquem asas na curiosidade.
Na maioria das vezes, se deparam com professores cansados,
derrotados. Inverte-se o efeito dos fotógrafos cegos
indivíduos sem problema de visão não
conseguem enxergar.
PS: Coloquei neste
link fotos da exposição dos cegos, além
de algumas gravações que fiz com personalidades
que se destacaram em suas carreiras.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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