A magia
está em converter a rua, com seus encantos, numa aventura
do conhecimento e, assim, fazê-la entrar na escola
Num gesto de desespero, a Prefeitura de Washington começou
a oferecer, neste semestre, R$ 400 mensais para os estudantes
de escolas públicas que se comportarem bem e tirarem
boas notas. Essa "bolsa disciplina" dá uma
pista da dificuldade de Barack Obama em aceitar as pressões
para que matricule suas duas filhas na rede de ensino municipal
de Washington -conhecida por suas notas baixas, pelas drogas
e pela violência.
Imagina-se que o exemplo de Obama em matricular suas próprias
filhas numa escola pública mostraria ao país
um futuro presidente extremamente comprometido com a qualidade
da educação. Talvez seja esse um certeiro lance
de marketing, mas dificilmente ajudaria o desempenho das duas
garotas. Apenas a metade dos matriculados no ensino médio
consegue tirar o diploma -e, a maior parte, apresenta desempenho
muito ruim.
A opção pelo pagamento por bom comportamento
só veio depois de inúmeras experiências
fracassarem. Além dos mais diferentes projetos sociais
bancados pela comunidade, os alunos estudam em período
integral e custam ao governo, mensalmente, mais do que custa
um aluno o ano todo para a rede pública brasileira.
Aliás, um único mês de "bolsa disciplina"
significa mais de dois meses de tudo o que se gasta com nosso
estudante de escola pública.
O dilema da família Obama mostra a complexidade do
enfrentamento contra a violência em geral, e nas escolas,
em particular. Esse tema voltou à pauta na semana passada,
com a depredação de uma escola pública
na zona leste de São Paulo.
A barbárie na zona leste ganhou as manchetes porque
os estragos foram concentrados num único local. Mas
sabemos que as depredações ocorrem todos os
dias, em meio a um ambiente crônico de selvageria. Nas
regiões metropolitanas, pior do que a questão
salarial e a falta de infra-estrutura, o que de fato incomoda
os professores é a agressividade dos alunos -isso explica,
em boa parte, porque os professores contraem tantas doenças
associadas ao estresse.
Cria-se um círculo vicioso: o aluno ataca a escola
e atinge o professor. Esse, por sua vez, ataca a escola e
o aluno se sente atacado.
A depredação na zona leste sintetiza a falta
de perspectiva dos jovens das grandes cidades, especialmente
em regiões metropolitanas. No entanto, já sabemos
que a solução existe em várias partes
do mundo, inclusive no Brasil.
No mês passado, visitei uma escola pública em
Recife (Cícero Dias), onde uma parte do currículo,
bancado pela iniciativa privada, é voltado a mídias
digitais. Testemunhei a compenetração dos estudantes
aprendendo a fazer jogos no computador. Uma experiência
semelhante, e com bons resultados, começou a ser aplicada
neste ano numa escola pública do Rio (Leite Lopes).
Em Praia Grande, no litoral de São Paulo, criou-se
a figura do pedagogo comunitário, que visita as famílias
e ensina a usar os mais diferentes espaços para o aprendizado.
Aos domingos, por exemplo, eles ficam numa praça lendo
livros para quem aparecer. Além de melhorar o interesse
pela leitura, caíram a evasão e a repetência
escolar. É exatamente o que se vê num projeto
lançado em Belo Horizonte, já citado nesta coluna,
em que universitários dos mais diferentes cursos auxiliam,
diariamente, a rede municipal. Na violenta Nova Iguaçu
(RJ), os alunos das escolas que recebem treinamento específico
para saber criar laços com seu entorno, envolvendo
a família, são mais disciplinados. Desenvolvem-se
ali programas para melhorar as habilidades de comunicação
e alguns dos estudantes produzem vinhetas para a TV Globo.
Essas experiências são diferentes modalidades
de arranjo educativo local -ajudam a tirar o professor do
isolamento, dando-lhe novos parceiros. O interesse do aluno
é despertado quando, em vez das aulas discursivas,
são oferecidas oportunidades de expressão, como
os jogos digitais do Recife ou a leitura nas praças
de Praia Grande. Em essência, o que se cria é
um novo tipo de professor que combina com uma nova cidade
-o professor de rua.
A magia está em converter a rua, com seus encantos,
numa aventura do conhecimento e, assim, fazê-la entrar
na escola.
Evidentemente, não é fácil. A prova está
na capital da nação mais poderosa do mundo.
Parece mais fácil um negro comandar a Casa Branca do
que as filhas de um presidente estudarem numa escola pública
de Washington.
PS: Ainda é cedo para saber se a experiência
do "bolsa disciplina" vai dar certo. Mas, por trás
dela, existe uma extraordinária história -e
essa já deu certo. O inventor do projeto é o
economista Roland Fryer. Nasceu negro e pobre. Ainda criança,
ele foi abandonado pela mãe. Dependeu do pai, um alcoólatra.
Nada disso o impediu de se tornar professor de Harvard -onde
se formou Obama. Sua salvação: uma avó,
professora. É aficionado em inventar fórmulas
para melhorar o desempenho dos pobres em geral e dos negros
em particular. Há um preciso relato do caso de Washington
no jornal "Valor Econômico". Detalho neste
link as praças de leitura de Praia Grande e seus
pedagogos comunitários.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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