Estamos
em um círculo virtuoso, provocado por uma série
de fatores -entre eles, a melhoria da educação
e o boom cultural
Um cemitário de São Paulo se transformou em
um dos meus prazeres diários na cidade. Nos últimos
dois anos, periodicamente, pedaços de suas paredes
externas vêm sendo ocupados por peças de azulejo
produzidas por artistas ou apenas cidadãos comuns que
desejam deixar ali sua marca.
Como o cemitério fica no meu bairro, a Vila Madalena,
e tenho o hábito de andar a pé, aprendi a apreciá-lo
como se fosse uma galeria, em movimento, a céu aberto.
Quase todos os dias, descubro uma novidade.
Às vezes, um pequeno detalhe que tinha passado despercebido.
Ou apenas via os painéis por outro ângulo, dependendo
do reflexo da luz.
Um espaço sem vida, revitalizado pelo empenho discreto,
anônimo, de toda uma comunidade. Quando tento saber
o que vem por aí na cidade e imaginar o impacto do
futuro prefeito que sai hoje das urnas, o cemitério
São Paulo parece sua metáfora em construção.
O próximo prefeito vai pegar uma cidade quase ingovernável
e, para piorar, a crise econômica vai abalar a sua capacidade
de investimento.
Sem contar quanto custará em redução
de empregos, de salário, além da contenção
de novos projetos.
Quem não se ilude com a manipulação da
campanha eleitoral está consciente de que, numa cidade
com 11 milhões de habitantes, sendo 3 milhões
de pobres, os desafios da educação, da saúde,
do trânsito e da segurança são tarefas
para gerações.
Mas, mesmo com a crise, o próximo prefeito não
vai pegar uma cidade com paz de cemitério. Os números
mostram que estamos num círculo virtuoso, provocado
por uma série de fatores -entre eles, a melhoria da
educação e a efervescência cultural que,
entre outras coisas, produzem indivíduos mais críticos
e exigentes. Basta lembrar que os museus viraram a grande
praia do paulistano, atraindo as classes C e D, conforme mostrou
pesquisa do Datafolha.
Atingiu-se um grau de mobilização que vem
traduzindo em números as metas para cada região
de São Paulo. Bairros estão se tornando modelos
de gestão ao combater a violência ou melhorar
suas escolas. Começam a surgir em algumas localidades
montagens de complexas redes, como as plataformas desenvolvidas
pelo Sou da Paz em parceria com o Unicef.
Reclamamos que os candidatos ainda mostram planos vagos
de governo. Mas somos obrigados a reconhecer que tanto Gilberto
Kassab como Marta Suplicy aceitaram se submeter a uma maratona
de sabatinas nas rádios e emissoras de TV, a maioria
delas duras -sem contar as sabatinas conduzidas por associações
comunitárias.
Houve até encontros temáticos que exigiram mais
profundidade. Num deles, os dois candidatos tiveram de responder
a perguntas apenas sobre educação.
Não pudemos extrair números precisos deles,
mas constatamos um consenso de propostas -essa é a
notícia mais importante das eleições
paulistanas.
Todos falam em dar mais atenção à pré-escola
(em especial às creches), ampliar a jornada escolar,
aproximar a cultura dos alunos, formar melhor os professores.
É consenso que se deve levar para a periferia uma rede
maior de especialidades médicas. Ninguém defende
mais transporte individual; Kassab e Marta passaram a campanha
falando em corredor de ônibus e metrô.
Ficou nítido pelos discursos que os resultados de uma
prefeitura estão diretamente condicionados a executar
suas tarefas em parceria com o governador e com o presidente
-é o caso do metrô.
O eleitor paulistano prestou basicamente atenção
aos seus problemas locais, num pragmatismo de quem aprende
a ser cidadão. Não pesaram as sucessões
presidencial e estadual; Lula e Serra apareceram como personagens
capazes de ajudar a resolver questões locais.
Por isso, os candidatos tiveram de jurar que, se eleitos,
ficariam no cargo até o fim do seu mandato. Marta prometeu
ficar por oito anos, perseguindo a reeleição.
Kassab disse que, se ele não cumprisse suas palavras,
os eleitores não deveriam votar mais nele. "Não
votem em mim", disse na semana passada.
Volto a dizer que Kassab e Marta, por suas experiências
administrativas e conhecimentos da cidade, ambos com boa avaliação
em suas gestões, estão mais do que preparados
para um novo mandato.
Essas mudanças não fazem ainda de São
Paulo uma cidade civilizada. Apenas mostram uma resistência
e sinais de inteligência e vida. Muitas vezes me perguntam
por que gosto tanto de São Paulo, com tantos problemas,
e a resposta está no cemitério. Prefiro viver
em uma cidade em que a beleza não está na paisagem
natural, mas na beleza construída pelas mãos
-assim como as paredes do cemitério São Paulo.
PS: Coloquei neste
link as imagens do cemitério -aliás, em
um bairro da diversão e das artes, como a Vila Madalena,
o cemitério só poderia mesmo ser colorido.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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