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Como alguém é
capaz de apanhar tanto por tanto tempo e ainda ficar mais
forte eleitoralmente?
Um dos mais respeitados estudiosos da realidade social brasileira,
o economista Ricardo Paes de Barros fez uma série de
cálculos matemáticos que ajudam a esclarecer
o enigma de Lula. Como alguém é capaz de apanhar
tanto por tanto tempo e ainda ficar mais forte eleitoralmente,
como mostraram mais uma vez, na semana passada, Ibope e Vox
Populi?
Sabemos que boa parte desse prestígio se deve a programas
como o Bolsa-Família, à estabilidade da moeda
-o preço dos alimentos cresce abaixo da inflação-,
ao aumento do salário mínimo e à geração
de empregos. Ricardo Paes de Barros vai mais longe e detalha
o impacto dessas ações entre os 20% mais pobres
da população. "É como se essas pessoas,
sem nenhum exagero, estivessem na China."
Em 2004, por exemplo, nesse segmento mais pobre, o aumento
da renda per capita foi de 12%, para um crescimento médio,
no país, de 3% -é um movimento que, embora em
menor intensidade, vem desde 2000 e perdura até agora.
Os cálculos dele são baseados nas amostragens
oficiais realizadas pelo IBGE e se baseiam na redução
da desigualdade combinada com o crescimento econômico.
"Em geral, as pessoas não percebem o efeito dessa
combinação porque não se traduzem os
indicadores", diz ele.
É difícil, de fato, entender o que significa
uma redução do coeficiente de Gini (medida de
concentração de renda), que, de 2000 a 2004,
caiu de 0,597 para 0,574. É uma redução
de 4%, o que, ainda assim, não diz muita coisa -1%
menos ao ano. Parece também não dizer nada que,
nesse período, a renda dos 20%, em relação
ao total do bolo, subiu de 2,2% para 2,7%. Supondo-se que
o crescimento econômico fosse zero e mantida a redução
da desigualdade de 1%, a evolução da renda per
capita dos mais pobres chegaria a 4%; daí se vê
o peso da distribuição de renda.
A tradução desses amontoados de números
é o padrão "chinês", ou seja,
um aumento médio, nesses quatro anos, de quase 8%.
Para os 10% mais pobres, no ano de 2004, o poder aquisitivo
subiu 16%.
Em nenhum momento, nem indiretamente, Ricardo Paes de Barros
vincula esses dados ao desempenho eleitoral de Lula. Mas é
como pode ser entendido o significado do anúncio, na
quarta-feira, do aumento de 1,4% do PIB do primeiro trimestre
deste ano em relação ao mesmo período
do ano anterior. Isso indica que, no final do ano, a economia
terá crescido algo em torno de 4%.
Na tradução de Paes de Barros, supondo (como
ele imagina provável) que a distribuição
de renda continue evoluindo, devido à ampliação,
por exemplo, dos programas de renda e do salário mínimo,
aquela faixa dos 20% mais pobres continuará acima do
"padrão chinês". "Esse segmento
está na euforia. Ao contrário do que acontece
nas camadas mais altas, onde a renda está estagnada
ou, em determinadas faixas, caindo", diz. É algo
que as pessoas que estão no topo não conseguem
sentir e, talvez por isso, tenha sido mais difícil
vislumbrar a força de Lula nas camadas mais pobres.
Tal intimidade com os mais pobres explica, pelo menos em parte,
por que tanta gente experiente tenha decretado antecipadamente
o fim de Lula, a tal ponto que se supunha que o escolhido
pelo PSDB já estaria com um pé na Presidência.
Aponta-se, e com certa razão, que boa parte da população
não entende as notícias sobre corrupção.
Muitos dizem que, no fundo, os brasileiros aceitam o rouba-mas-faz.
Fala-se que os mais pobres, segundo pesquisas qualitativas,
se recusam a acreditar que Lula - um deles"- esteja vinculado
à bandalheira.
Nada disso, porém, teria muita influência se
boa parte dos eleitores não sentissem melhoria em suas
vidas. Os cálculos de Ricardo Barros, um economista
independente, estão mostrando que, em determinado segmento,
essa melhoria é muito maior do que se imaginava, daí
a resiliência presidencial. Diante disso, termos como
choque de gestão, ajuste fiscal, bandeiras de Alckmin,
embora relevantes, são, até aqui, abstrações.
PS- Lula é beneficiário da herança bendita
de FHC. Herdou a estabilidade de preços e os programas
sociais, depois unificados no Bolsa-Família. Alguém
teria de ser desonesto para não admitir a influência
dessas conquistas nos bons índices do presidente. Assim
como seria desonesto não admitir que Lula soube ampliar
e aprimorar essa herança. Arrisco dizer que FHC é
o grande eleitor de Lula. O drama agora é saber o que
virá com a herança maldita a ser deixada por
Lula, talvez para ele mesmo, de aumento dos gastos do funcionalismo
e das aposentadorias. No seu segundo mandato, caso vença,
Lula colherá a tempestade que ele próprio semeou,
com a diferença de que não poderá culpar
ninguém.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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