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O roteiro por trás de
"Querô" mostra que a prevenção
à violência começa quando o jovem se sente
respeitado
Até o começo do ano passado, o adolescente Maxwell
do Nascimento ainda não sabia se ficaria longe do crime.
"O crime era uma possibilidade", admite. Essa opção
não seria surpresa em seu bairro, nas imediações
do Mercado Municipal, em Santos, repleto de casos de jovens
envolvidos com gangues e drogas. Foi salvo pelo cinema. "Meu
projeto agora é ser ator."
Após vários meses de testes, foi escolhido para
fazer o papel do ator principal do filme "Querô",
a ser lançado neste ano, baseado no livro do santista
Plínio Marcos; o tema é a infância marginalizada
encenada nas ruas próximas do porto de Santos. Além
de Maxwell, mais 38 adolescentes, todos pobres, participaram
de variadas oficinas de expressão antes das filmagens.
Ao ensaiar as falas, muitas vezes confundiam-se ficção
e realidade. Alguns deles acabavam chorando de verdade sem
entender muito bem o porquê. "Eles aprenderam que
homem não chora", conta Carlos Cortez, diretor
do filme. Nas cenas de agressão, não raro o
murro ia com força, como se estivessem nas ruas.
Aos poucos, eles iam se conhecendo, descobrindo o prazer do
aprendizado e fazendo planos para o futuro. A mudança
de Maxwell foi tão visível que sua mãe,
Maria Nilza, teve uma estranha reação ao ser
informada de que o filho passaria a ganhar um cachê.
"Não precisa pagar. Isso que vocês fizeram
já está bom."
O cineasta não sabia que, ao documentar a mudança
dos meninos, estava registrando, passo a passo, um roteiro
didático de prevenção à violência
-esse tipo de experiência torna-se ainda mais valioso
depois do trauma provocado pelo PCC.
Na semana passada, Lula usou o horário destinado ao
PT na televisão para voltar a dizer que a educação
é a melhor arma contra a violência; esse deve
ser um dos temas preferenciais de sua campanha. As generalidades
de campanha são, porém, traduzidas com perfeição
por Maxwell e seus 38 amigos, naquele mesmo cenário
que, por coincidência, fez parte da adolescência
do migrante Lula.
Ao ser chamado para os ensaios, o adolescente Richard Berovelli
disse algo extraordinariamente sintético sobre a sensação
de impotência. Não tinha idéia sobre o
que faria no futuro e, aliás, nem se teria algum futuro.
"Ia deixar a vida escolher para mim." Traduzindo,
ele já estava rendido.
O roteiro por trás das telas de "Querô"
mostra que a prevenção à violência
começa quando a criança e o jovem se sentem
respeitados, passam a gostar de si, desenvolvem uma relação
de pertencimento a algo (no caso, a arte) e, enfim, se tornam
visíveis. Inicia-se, assim, a quebra do círculo
vicioso da marginalidade.
O que se vê aqui é o sucesso, já comprovado,
do uso das mais diferentes formas de expressão, através
da arte e da comunicação, para gerar perspectivas
de vida. Isso significa, na prática, que educação
contra a violência funciona quando se estimulam, dentro
e fora da escolas, programas para o jovem ser protagonista,
agente e beneficiário da mudança.
Nas escolas abertas aos fins de semana, a violência
tem caído sistematicamente. Naquelas em que, além
de abertas, há programas de protagonismo juvenil, a
queda é maior ainda. Outra lição do "Querô".
Em meio aos ensaios, os jovens eram convidados a encontrar
espaços culturais em Santos, onde poderiam apreciar,
sem pagar, manifestações de arte ; o Sesc, por
exemplo. Montou-se então uma trilha de aprendizado
fora da escola. As filmagens já acabaram, mas eles
continuam a receber aulas para a produção de
vídeos e, através de suas câmaras, redescobrem
a vida.
Finalmente, como eles já estavam se sentido integrados
a algo -e a comunidade passava a ser um foco em realização-,
foi mais fácil fazer com que valorizassem a família
e a escola.
Nada disso significa que o futuro tenha se aberto a eles.
Há muitos obstáculos pela frente para ter uma
boa escolaridade e conseguir um bom emprego. Mas, se os políticos
quiserem levar a sério a frase de que a melhor arma
contra a violência é a educação
(o que em termos gerais está certo, mas é apenas
um chavão vazio), o caminho é preparar esquemas
para que as pessoas possam se expressar e, assim, não
serem invisíveis. Quanto mais cedo, melhor.
P.S- Duas experiências feitas pela USP e pela Unicamp
com 7.000 professores e diretores das redes municipal e estadual
de SP vêm coletando muitas lições como
a de "Querô"; o curso visa formar educadores
comunitários. Eles estão sendo treinados a fazer
de suas escolas centros de articulação que envolvam
a família e a cidade, a começar do bairro; formam-se,
assim, trilhas educativas em torno das escolas. Os relatos
têm mostrado que aqueles que conseguem articular melhor
esses ambientes -escola, família e comunidade- tendem
a produzir alunos eficientes e cidadãos responsáveis.
Comunidade
faz Cinema
USP
treina professor comunitário
A invenção do professor-visitador
Professor
Comunitário
Educação
comunitária para os paulistanos
Professor
ganha nova função dentro e fora de sala de aula
Violência
cai 40% com a abertura das escolas nos fins de semana
Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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