Raras vezes se divulgaram tantas
boas notícias em tão pouco tempo sobre a qualidade de vida
do brasileiro -nem a queda da taxa de crescimento econômico
conseguiu ofuscar esse fato. Por isso, é previsível que PT
e PSDB se apresentem como os responsáveis pela evolução social.
Como estamos entrando num ano eleitoral, a possibilidade de
você, caro leitor, ser ludibriado é enorme.
Dados sobre 2004 divulgados na semana passada:
1) Mais 2,7 milhões de empregos. É a melhor marca, proporcionalmente,
desde 1992. 2) Segundo a Fundação Getúlio Vargas, 2,6 milhões
de indivíduos deixaram para trás a linha de pobreza.
3) Melhorou a distribuição de renda, atingindo um marco que
não se via desde 1981. 4) A expectativa de vida subiu para
71,7 anos; em São Paulo, foi para 73,4. 5) A mortalidade infantil
caiu para 26 óbitos por mil nascimentos; 60% menor do que
em 1980.
Lula tem todas as condições de dizer, na sucessão presidencial,
que, pelo menos em parte, é responsável por essas boas notícias.
Gostem ou não do presidente ou de sua política econômica,
o fato é que ele conseguiu manter um grau de estabilidade
que assegurou mais empregos e queda da inflação. Podia ser
melhor, mas essa é outra discussão.
O PSDB também tem o direito de entrar nessa batalha autoral.
Na gestão FHC, cresceu expressivamente o número de matrículas
escolares, expandiram-se os programas de agentes de saúde
e disseminaram-se programas de renda mínima.
O Bolsa-Família é um avanço conceitual da gestão Lula, por
unificar os vários benefícios concedidos na administração
passada. O programa poderia funcionar melhor e oferecer mais
portas de saídas, mas essa também é outra discussão. Maior
programa de distribuição de recursos diretamente aos pobres
da história do Brasil, o Bolsa-Família tem muitos padrinhos,
como o senador Eduardo Suplicy, que, nos primeiros anos de
1980, fez uma campanha pela idéia da renda mínima. Uma década
depois, o então prefeito José Roberto Magalhães, do PSDB,
implantou um programa de bolsas em Campinas. Era reflexo das
conclusões do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas, da
Unicamp, onde se dissecava o desastre dos gastos sociais brasileiros.
Ao mesmo tempo, Cristovam Buarque, do PT, então governador
do Distrito Federal, lançou programa na mesma linha do que
se implantava em Campinas. Seu diferencial foi a ênfase maior
na contrapartida da freqüência escolar para o beneficiário
da bolsa. Tal tipo de proposta já vinha sendo estudado na
Universidade de Brasília, na qual Cristovam foi reitor. Nascia,
assim, o Bolsa- Escola.
A rede autoral, em torno do Bolsa-Família, é ainda mais complexa.
O sociólogo Vilmar Faria, professor da USP e da Unicamp, orientou
estudantes que, depois, rumaram para os governos do PT e do
PSDB, dispostos a criar políticas sociais mais modernas. Valorizavam
a integração das ações e a redução da intermediação dos recursos.
Instalado no Palácio do Planalto, Vilmar, cuja discrição era
inversamente proporcional à sua ascendência, foi o mais influente
assessor de Fernando Henrique Cardoso na montagem de um plano
de redução da pobreza. Vilmar já tinha desenhado o foco das
ações na família e a unificação das bolsas.
Não fosse, porém, pelo PFL -mais precisamente Antonio Carlos
Magalhães-, essas idéias não teriam ganho tanta amplitude
no final da década de 1990. ACM inspirou um fundo de combate
à pobreza, que drenou dinheiro para os programas de renda
mínima. Assim, o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimentação chegaram
a milhões de alunos e de mães.
Lula teve o mérito de ampliar os programas -isso lhe garante
sociedade na redução da pobreza apontada pela Fundação Getúlio
Vargas.
Essa complexidade autoral do Bolsa-Família ocorre em todos
os avanços sociais. Não há dúvida que, durante a fase de Paulo
Renato Souza no Ministério da Educação, melhorou muito o número
de matrículas escolares, uma das grandes conquistas nacionais.
Mas isso não teria sido possível sem o envolvimento de prefeitos,
governadores e das dezenas de milhares de ONGs mobilizando
instituições e famílias pela educação.
Não se consegue entender a redução da mortalidade infantil
sem lembrar dos agentes de saúde, no Ceará, da ação da Pastoral
da Criança, conduzida pela médica Zilda Arns, das campanhas
pela vacinação ampliadas pela mídia e das obras de saneamento
básico feitas por milhares de prefeitos e governadores.
O trabalho de Zilda Arns contra a desnutrição, mostrando
como se gasta tão pouco e se salvam tantas vidas, faz parte
da constelação de entidades não-governamentais que se espalham
pelo Brasil. A década de 1990 foi a década da violência urbana.
Nesse período, porém, explodiu o número de associações comunitárias
sem fins lucrativos, de voluntários e de empresas com projetos
sociais.
Nada mais antigo do que a palavra vanguarda. Mas o fato é
que a barbárie da violência mesclada à ineficiência dos serviços
públicos está ajudando a produzir, dentro e fora do governo,
uma vanguarda social treinada em métodos de gestão mais sofisticados.
Esta é uma das nossas maiores riquezas.
P.S. - Temos o que comemorar. Mas imagine se os juros e os
impostos não fossem tão altos, o crescimento tão baixo e os
recursos sociais tão desperdiçados. Daí que na próxima eleição
presidencial o grande assunto, além da ética, será o da gestão.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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