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Fragmentada pela miséria
e murada pela violência que a transformam num arquipélago
de guetos, São Paulo estará unificada, neste
final de semana, pela diversidade cultural. Não se
tem registro, na cidade (e nem em qualquer outra cidade brasileira),
de tantos eventos artísticos tão diferentes
acontecendo em tão pouco tempo. A cultura é,
nesse caso, o menos importante.
Mesclam-se, num único evento, rock, cordel, reggae,
pagode, baião, samba, música erudita, sacra
e eletrônica. Há de tudo para todos os gostos
e quase ao mesmo tempo nos mais diferentes tipos de palco
-de uma sala de concerto a um viaduto- que se estendem do
centro à periferia. Estão usando como palco
para leitura de poesias até mesmo um cemitério;
um grupo de teatro resolveu encenar uma peça, dividida
em cenas espalhadas pela cidade durante 24 horas.
Independentemente do número de pessoas que participem
da chamada "Virada Cultural", arrisco dizer que
é um evento histórico, por revelar o desenho
do futuro possível de uma metrópole.
Quando você estiver lendo essa coluna, o desenho do
futuro de uma cidade já estará se desfazendo.
Voltaremos à rotina dos guetos e das diferentes manifestações
de violência.
Quando se fala em violência, pensamos em assaltos, roubos,
seqüestros. Mas existem outras formas como as calçadas
escassas para os pedestres, a feiúra crônica
da poluição visual e sonora, os motoboys estendidos
no chão, os meninos pedintes separados pelos muros
de vidros blindados de automóveis.
A violência aparece nos 30% dos alunos do ensino infantil
do município de São Paulo com anemia, devido
à alimentação ruim; a incidência
é de 57% em crianças de até dois anos
de idade. Não é necessário ter estudado
medicina para saber que a anemia, especialmente a provocada
pela baixa presença de ferro no organismo, torna tão
provável uma criança prestar a atenção
numa aula quanto um adulto se concentrar numa palestra técnica,
depois de passar a noite numa balada e ficar sem dormir. São
70% de alunos com cáries; 10% com algum problema de
vista, 20% sofrendo de verminoses e 30% de dificuldade auditiva.
Muitos não aprendem porque não usam óculos.
Nem estou falando de distúrbios psicológicos
sem tratamento.
A violência cotidiana é apenas a conseqüência
da incompetência de toda uma comunidade que não
sabe lidar com suas fragmentações e desigualdades.
Mais importante do que a qualidade dos shows e a quantidade
de espectadores nessa maratona cultural é a visualização
de uma cidade que, apesar de sitiada, resiste e mostra o que
há de melhor nela pela diversidade do conhecimento
-e aí está o desenho de futuro.
Se há uma monumental história de incompetência
e selvageria, ocorre também uma história de
resistência, movida pelo instinto de sobrevivência.
O principal objetivo dessa resistência dispersa, sem
líder e manifesto, é a noção de
que a civilidade depende da partilha do saber.
Os sinais dessa resistência se notam na redução
dos índices de homicídios, em favelas e bairros
periféricos paulistanos, em proporções
jamais vistas. Também aparecem no número de
alunos que possuem o diploma de ensino médio -85% dos
jovens até 21 anos-, muitos dos quais ralando de noite
e nos finais de semana em cursos supletivos. Aparecem na disseminação
de cursinhos pré-vestibulares na periferia e nos programas
complementares oferecidos às escolas públicas,
a maioria delas abertas nos finais de semana. Destacam-se
os batalhões de jovens voluntários das escolas
de elite ou dos programas sociais das empresas.
É articulado, neste momento, um manifesto a ser assinado
pelas mais importantes personalidades e instituições
brasileiras para fazer da educação a prioridade
entre as prioridades. Seu lançamento deve acontecer,
no próximo ano, no Museu da Ipiranga. O cenário
sugere a idéia de que a soberania da nação
depende da autonomia de seus cidadãos -e, sem educação
de qualidade, essa independência sempre será
frágil.
Pretende-se estabelecer uma agenda, monitorada periodicamente,
sobre como deveríamos estar, em 2022, quando se comemora
o bicentenário da independência do Brasil.
Exatamente nisso -a aposta da democratização
do conhecimento como fator de unificação de
um país, e não apenas no território-
que reside o simbolismo de um arquipélago de guetos,
selvagem, que, pelo menos em ínfimas 24 horas, se integra
pela arte, ou seja, pelo prazer da partilha do conhecimento.
Só a educação, porém, conseguirá
produzir a cidadania 24 horas. Mas, então, não
será fugaz.
P.S. - Por falar em educação e resistência.
Começa na próxima semana, em São Paulo,
um movimento para pressionar o governo federal a regulamentar
a lei de aprendizagem. Se essa lei sair do papel, seriam criados,
segundo o Ministério do Trabalho, 650 mil empregos
para jovens. Depois dos episódios de Paris, nossas
autoridades deveriam pensar melhor sobre o que significa deixar
os jovens sem perspectiva.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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