Com 1.500
alunos, a escola tinha um nome pomposo, Comandante Garcia
Dávila, mas era chamada de "maloquinha".
Quem entrasse ali veria logo que o apelido era auto-explicativo:
vidros quebrados, paredes pichadas, portas com marcas de arrombamento,
vasos sanitários entupidos, cadeiras quebradas, marcas
de infiltração de água nas paredes. Os
professores viviam apavorados com as gangues que traficavam
drogas e os ameaçavam de retaliação se
não ficassem calados. Os seguranças não
se atreviam, muitas vezes, a apartar as brigas dos alunos,
dos quais muitos portavam armas.
A "maloquinha", porém, foi salva pela pedagogia
do samba. Sem saber que se tinham tornado educadores, carnavalescos,
com seus passos e fantasias, produziram um extraordinário
enredo de revitalização comunitária,
ainda praticamente desconhecido.
O novo enredo da "maloquinha", no Parque Peruche,
zona norte de São Paulo, começou em 1995, quando
a escola passou a ser dirigida por um indivíduo que,
antes de virar professor, detestava estudar. "Eu fazia
o que podia para cabular as aulas", recorda-se Waldir
Romero, cuja paixão eram os esportes, especialmente
o futebol.
Os esportes levaram Waldir a se formar em educação
física e, ao tornar-se professor, interessou-se por
pedagogia e descobriu as razões de sua ojeriza adolescente
às salas de aula. "Quase tudo o que ensinavam
não fazia me fazia o menor sentido."
Então do lado oposto dos alunos que também detestavam
estudar, Romero viu-se obrigado a ensinar a quem não
queria aprender e, pior, cercado de violência e degradação.
Encontrou a saída exatamente no seu passado de "mau"
aluno: foi procurar o prazer das ruas. E encontrou o prazer
bem ao seu lado.
Há uma peculiaridade histórica que ajudou Romero.
Libertados da escravidão, os negros foram, aos poucos,
sendo expulsos das zonas mais nobres da cidade de São
Paulo. No rumo à periferia, muitos deles se fixaram
onde é hoje o Parque Peruche, o que explica por que
o bairro é povoado de tantas escolas de samba, freqüentadas
pela maioria dos alunos da "maloquinha". "Se
tínhamos alguma chance de salvação, ela
não estava nas salas de aulas, estava nos barracões."
Convidou os blocos a usar o ginásio da sua escola.
"Lentamente, foram perdendo a desconfiança. Tinham
medo das manipulações políticas."
Ao mesmo tempo, promoveu atividades para os alunos nos barracões.
"Era como se formássemos um mesmo ambiente de
aprendizado."
Para aprimorar essa integração cultural, Romero
enriqueceu as atividades extraclasse com aulas de cavaquinho,
violão, percussão e capoeira; os professores
eram arregimentados nos barracões.
Várias escolas de samba da cidade, como a campeã
Mocidade Alegre e a Gaviões da Fiel, preferida da torcida
organizada do Corinthians, adotaram a quadra da "maloquinha"
como espaço oficial de ensaios. Alguns jovens, mais
violentos, logo perceberam que não seria muito prudente
desrespeitar a "maloquinha" e arrumar uma briga,
por exemplo, com a Fiel . A maioria nem precisou do argumento
do medo: apenas se sentiu apropriando-se de um espaço.
Festas de casamento, batizado e aniversário passaram
a ser feitas na escola.
Mais difícil que levar o samba para o pátio
era levá-lo para a sala de aula. Nisso está
um dos pontos mais férteis dessa experiência.
Professores sentiram-se provocados a deixar a rotina curricular
de lado e tirar proveito do samba nas aulas de português,
história, geografia e até ciências. Exemplo
óbvio: aprender gramática por meio das letras
de música.
Para desenvolverem o senso de empreendedorismo, os alunos
foram convidados a organizar, com todos os requintes possíveis,
um desfile. Teriam de fazer o enredo (o que os obrigava a
estudar história), compor as músicas (ajudados
pelos professores de português) e montar as fantasias
e os carros alegóricos (uma chance de aprimorar as
aulas de matemática).
Isso fez com que muitos jovens, profissionalizados, pudessem
ver no Carnaval uma fonte de renda. Nesse momento, dirigentes
comunitários imaginam-se até mesmo capazes de
usar o potencial artístico local para gerar empregos:
querem fazer uma espécie de bairro do samba, com casas
de shows, bares e restaurantes e, assim, atrair pessoas de
toda a cidade. "Esse é o nosso sonho", diz
Romero.
Sonhos à parte, colhem-se resultados reais: diminuiu
a repetência, a evasão caiu drasticamente, as
instalações físicas estão preservadas,
pararam os roubos e depredações. A violência
quase desapareceu.
Apesar de ainda distantes do ideal, as notas dos alunos melhoraram.
Mas uma coisa se conseguiu: quase ninguém mais chama
a escola de "maloquinha".
PS - Não foi gasto dinheiro público a mais
para fazer essa experiência. Volto a dizer: se quiserem
melhorar a educação, comecem treinando os diretores
para serem não burocratas, mas dirigentes comunitários.
Conhecendo escolas públicas de várias partes
do mundo, da Índia aos Estados Unidos, da África
à América Latina, inclusive do Brasil, ainda
não vi esse princípio fracassar. Só essa
formação não basta, mas, sem isso, não
se consegue quase nada.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S. Paulo, na editoria
Cotidiano.
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