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A canção "New
York, New York" fala de como é maravilhoso acordar
numa cidade que nunca dorme.
O que se canta de Nova York se prova, em números, sobre
São Paulo. Segundo pesquisa do Datafolha, divulgada
na quarta-feira, 58% dos paulistanos têm insônia
ou dormem mal; 28% disseram que dormem menos do que o suficiente.
Esse trauma coletivo de falta de sono é, segundo os
especialistas, resultado, em boa parte, do ritmo de vida numa
cidade estressante, onde quase todos se sentem acuados pela
mistura caótica de violência com congestionamento,
enchentes, poluição e miséria. Daí
que muita gente preferiria, diferentemente do que diz a canção
sobre Nova York, acordar em outra cidade.
Por essas e outras, é ainda difícil levar a
sério o que vou dizer: São Paulo está
metida numa efervescência comunitária de proporções
desconhecidas em toda a sua história.
Um dos sinais dessa efervescência acaba de ser desenhado
na avenida Paulista.
Há poucas semanas, a prefeitura anunciou que não
teríamos o Réveillon. Apesar do pouco tempo
disponível, dos custos altos e da enorme logística
exigida para fazer um encontro daquelas proporções
-em 2002, havia quase 2 milhões de pessoas na avenida-,
a cidade não aceitou a idéia de passar o ano
em silêncio, como se estivesse de luto.
A mobilização surtiu efeito. Autoridades públicas
-inicialmente o governo do Estado e, depois, a prefeitura-
sensibilizaram-se; uma empresa entrou com o dinheiro.
O cenário em que ocorreu o Réveillon, a avenida
Paulista, é um exemplo de engenhosidade comunitária.
Lá se implantou um sistema de policiamento preventivo
que fez o crime desabar na região; policiais recebem
gratuitamente aulas de inglês. Recuperou-se uma escola
pública (a Rodrigues Alves), que estava caindo aos
pedaços. Educadores bancados por empresas tratam agora
de transformar o currículo da escola, integrando-o
às inúmeras potencialidades da vizinhança:
museus (Masp, por exemplo), centros culturais, cinemas, teatros,
exposições. O metrô transformou-se em
espaço de exposição de trabalhos dos
alunos. Ergue-se assim uma escola a céu aberto.
A poucos metros da Rodrigues Alves, um casarão (a Casa
das Rosas) virou um espaço dedicado exclusivamente
à poesia. Receberam uma estupenda doação:
a biblioteca inteira do poeta, ensaísta e tradutor
Haroldo de Campos.
Na outra ponta da avenida, um grupo de adoradores do cinema,
entre os quais Fernando Meirelles (do filme "Cidade de
Deus"), movido mais pela emoção do que
pela razão, recuperou, com a ajuda de um banco (HSBC),
um cinema (o Belas Artes) que estava a ponto de fechar as
portas.
Aos domingos, a avenida virou uma imensa praça com
brincadeiras educativas, fechada para os automóveis.
Toda essa movimentação na avenida Paulista é
uma das pontas salientes de um crescente movimento de resistência
à barbárie. Seja por marketing, seja por consciência
(ou pelas duas coisas juntas), elite que é elite na
cidade tem de se mostrar socialmente responsável. Não
é moda; é apenas uma nova regra de etiqueta.
Não há uma escola da elite sem um trabalho de
inclusão social, que ensine a seus alunos uma atitude
mais responsável.
Por todos os lados, disseminam-se associações
de bairro ou de rua, entidades não-governamentais,
projetos de empresas, indivíduos voluntários
querendo preservar e transformar escolas, orfanatos, creches,
asilos, centros culturais, parques, praças, bibliotecas,
museus, orquestras, monumentos. Propagam-se programas de geração
de renda e de estímulo à criação
de empresas.
Através do programa Escola da Família, dezenas
de milhares de jovens atuam em todos os fins de semana nas
escolas em troca da mensalidade das faculdades.
É impossível deixar de reconhecer que um dos
pontos fortes da gestão Marta, especialmente trágica
neste final de mandato, foi o estímulo ao sentido de
coletividade. Foram feitas, como nunca, parcerias.
São Paulo está num momento propício para
enfrentar com menos dificuldade sua inviabilidade crônica.
Voltam os sinais de crescimento, o que significa redução
da miséria. Depois da crise da indústria, investe-se
cada vez mais na vocação dos serviços.
Desenvolveram-se, nestes últimos anos, fortes políticas
públicas, que, embora sejam de gerenciamento duvidoso,
focam nos mais pobres. A população está
estabilizada e cada vez mais escolarizada.
É uma conjugação de cinco forças:
população mais educada, crescimento populacional
estabilizado, a iniciativa privada gerando mais empregos e
salários, o poder público implantando e gerenciado
melhor mais programas de educação e saúde
e, enfim, a comunidade se organizando, seja para estabelecer
parcerias, seja para cobrar eficiência, seja para denunciar
mazelas.
Está nas mãos de José Serra, uma vítima
crônica de insônia, não dormir e administrar
essas conjugações favoráveis, utilizando
o monumental capital humano da comunidade. Pactuar comunidade
com poder público, assim como ocorreu simbolicamente
na festa da Paulista, é a grande aventura a ser vivida
para São Paulo dormir melhor.
PS - Um excepcional exemplo da resistência comunitária
paulistana aconteceu neste semana. Numa luta solitária,
pais, alunos e professores conseguiram barrar na Justiça
o fechamento da escola Martim Francisco para dar lugar a um
empreendimento imobiliário. A pedido da prefeitura,
a Câmara dos Vereadores autorizou o fechamento da escola,
onde também funciona um posto de saúde que atende
a 4.000 pessoas por mês. Terminamos o ano com festa
na Paulista e salvando uma escola. Bom motivos para comemoração.
Merecemos mesmo uma festa.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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