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Raras vezes se viu no Brasil caso
tão extraordinário de desinformação
coletiva, a começar do presidente da República.
Na quinta-feira passada, pesquisa do IBGE informou que o problema
alimentar do país não é o excesso de
gente comendo pouco, mas gente que come muito, ameaçada
de sofrer as graves conseqüências da obesidade.
A verdade é que o Brasil está mais para a silhueta
de Lula do que para a dos miseráveis nordestinos pintados
por Portinari.
É uma reviravolta de proporções históricas
na autopercepção de um país. Cerca de
40% dos brasileiros, segundo a pesquisa, têm peso acima
do ideal; 4%, os desnutridos, têm déficit de
peso. O problema de saúde pública está,
portanto, no excesso -não na falta- de calorias.
Dados ainda vão ser atualizados para medir a desnutrição
de crianças e adolescentes. Mas certamente não
vão mudar a seguinte lição: informações
erradas, fenômeno tão corriqueiro na área
social, levam a políticas públicas desastradas,
ou seja, ao desperdício de dinheiro.
Daí se tira uma idéia de como se jogam fora
recursos destinados à redução da pobreza.
Quando a desinformação se junta ao marketing,
soma-se o insulto à ignorância. Para vender o
Fome Zero como sua principal bandeira, o presidente Lula chegou
a trabalhar com números da ordem de 45 milhões
de desnutridos. Tal dimensão justificaria a urgência
da implantação do programa. Empresários,
solícitos, participaram da arrecadação
de fundos; celebridades se mobilizaram em torno da campanha.
Lula conseguiu fazer o combate à fome aparecer, nas
pesquisas de opinião, em primeiro lugar entre as ações
bem-sucedidas de sua gestão. Ele saiu pelo mundo empunhando
essa bandeira, impressionando estadistas e a imprensa internacional.
O governo chegou a suspender a fiscalização
da contrapartida da bolsa-escola de que os alunos não
faltassem às aulas com o seguinte argumento: o importante
é que o dinheiro está ajudando a combater a
fome.
Muitos técnicos, porém, não se surpreenderam
com as descobertas do IBGE. Quando se lançou a campanha
contra a fome, advertiu-se -até mesmo num seminário
realizado pela Folha com o Ipea- que os números da
desnutrição estavam errados. Mesmo sem renda,
famílias conseguiam comida suficiente; seja por entrar
numa rede de solidariedade (inclusive as bolsas oficiais),
seja porque comiam o que plantavam, caçavam ou pescavam.
Tal fato foi mostrado detalhadamente por Ricardo Paes de Barros,
economista que usa a matemática para avaliar políticas
sociais. "Erraram na dimensão do problema e vão
errar na tentativa de resolução", dizia.
O efeito "obesidade" serve de sinal de que políticas
sociais podem até ganhar foguetório em seu anúncio,
conferindo aos governantes uma imagem de sensibilidade para
com os pobres, mas a questão central não é
a decisão de acabar com a pobreza, algo com que todos
concordam, e sim a maneira de fazer a gerência desses
projetos.
Tome-se um exemplo da semana passada. A Prefeitura de São
Paulo gastou cerca de R$ 20 milhões para construir
cada CEU (Centro Educacional Unificado). Esses "escolões"
são como oásis em regiões desoladas.
Dados oficiais mostram que os recursos para a sua manutenção
e operação não vêm sendo liberados.
Há várias semanas, professores protestam por
causa de atraso no pagamento dos salários.
O brasileiro ficaria horrorizado se pudesse acompanhar, com
um pouco mais de profundidade, casos desse tipo, em que são
feitos investimentos em prédios, mas a gerência
do programa é falha. Ou projetos que se perdem por
falta de foco, baseados em informações erradas.
Muitas vezes, as informações estão certas,
mas é tamanho o nível de fragmentação
das ações, sem conexões com os diversos
níveis da administração pública,
que se tornam pouco eficientes ou mesmo ineficientes. Outras
vezes, programas que funcionam são simplesmente interrompidos
por causa de mudanças no governo ou por causa das vaidades.
A novidade positiva é que começa a ser formada
nas universidades e no chamado terceiro setor uma geração
de técnicos em setor público, especializados
em mecanismos de monitoramento e avaliação de
políticas públicas. Essas pessoas é que,
no futuro, vão dar o tom da cobertura da imprensa nessas
questões e dos debates eleitorais.
É um assunto árido, chato até, mas, sem
isso, vamos acabar dando mais comida a quem já está
gordo -e, ainda por cima, ainda vamos aplaudir.
PS - Por falar em avaliação, vale a pena acompanhar
(aliás, para os educadores, é obrigatório
acompanhar) uma experiência realizada nos últimos
13 meses em 189 escolas municipais de Santa Catarina e São
Paulo. Sob o comando da educadora Rose Neubauer, apoiada pela
Fundação Lemann, os gestores daqueles escolas
receberam treinamento. O objetivo era melhorar a redação
e a leitura dos alunos. Ia-se medindo passo a passo a evolução
deles com base em critérios objetivos.
Apesar do pouco tempo da experiência, relatórios,
divulgados na quinta-feira, indicam uma melhora, ainda pequena,
mas ligeira, no desempenho dos estudantes. Daí se tira
que um dos melhores investimentos sociais é o que se
faz na formação dos diretores escolares. Mais
dados estão no www.fundacaolemann.org.br.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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