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Até
o ano passado, o tráfico de drogas e a venda de armas
eram feitos em frente às escolas municipais
Nos últimos oito meses, registrou-se apenas um homicídio
na Cidade de Deus, no Rio, uma região que, por causa
do filme, simbolizou mundialmente a imagem de nossa violência.
O ano não acabou, mas arrisco dizer que, na minha lista
pessoal, é uma das informações, no Brasil,
mais interessantes de 2009.
Até onde se sabe, esse único assassinato nada
teria a ver com o tráfico, mas com uma briga de família.
Além do simbólico, comprova-se a eficácia
de uma receita contra barbárie, em uma localidade considerada,
até pouco tempo atrás, desenganada. É
como se rodassem de novo o filme, desta vez com um final um
pouco mais feliz.
Demora até as pessoas acreditarem nesse tipo de estatística,
tão acostumados estão com manipulações
oficiais e com a violência. Há dez anos, o Jardim
Ângela, em São Paulo, foi apontado pela ONU como
a região mais violenta do mundo, mais do que qualquer
bairro do Rio, inclusive a Cidade de Deus. Naquele período,
o embate estatístico era com Medellín, na Colômbia.
Soa estranho que, segundo um indicador divulgado recentemente
pelo Ministério da Justiça, feito com apoio
de técnicos da Fundação Seade, a cidade
de São Paulo seja a capital mais segura para um jovem
morar. Mais do que Florianópolis e bem mais do que
Curitiba.
A posição de São Paulo se deve, pelo
menos em parte, à queda dos assassinatos no Jardim
Ângela, onde há o cemitério com mais jovens
enterrados por metro quadrado que se conhece.
Já vi esse filme antes. Cidade de Deus está
seguindo o modelo de Jardim Ângela, que, por sua vez,
seguia os modelos de Medellín, Bogotá e Nova
York. Tive a sorte de, nos últimos 15 anos, assistir
da primeira fila às mudanças nessas cidades.
No ano passado, a polícia decidiu montar um programa
de policiamento preventivo, acoplado a ações
repressivas e, assim, diminuiu a guerra entre as gangues locais.
O objetivo era uma ocupação permanente para
garantir o controle do território. Naquele mês,
foi deslanchada a operação no morro Dona Marta,
onde, nos últimos oito meses, não houve nenhum
homicídio.
O marco da queda da violência no Jardim Ângela
foi a instalação de um policiamento comunitário,
com diálogo com os moradores. Essa ação
chegou lá em meio a uma articulação local
envolvendo os mais diversos atores. Foi uma das primeiras
ações do projeto, nascido entre estudantes universitários,
que levou o nome de "Sou da Paz" -o projeto completou,
na terça-feira passada, dez anos, e foi um dos responsáveis
pela campanha do desarmamento.
Combina-se, assim, a ação policial com articulação
comunitária. Até o ano passado, o tráfico
de drogas e a venda de armas eram feitos na frente das escolas
municipais da Cidade de Deus. Os professores tinham de pedir
autorização para passar.
Muito diferente do que ocorre hoje. A prefeitura lançou
ali, no início do ano, a figura do professor comunitário,
treinando para montar redes entre a escola e a comunidade.
Desenvolveu-se o modelo de bairro educativo -cinco escolas
já estão em regime de tempo integral. Rapidamente,
aumentou a matrícula.
Há no Rio um projeto (Escola do Amanhã) de implantação
de período integral em 150 escolas das regiões
mais violentas, onde se implanta, além do professor
comunitário, a mãe comunitária. Uma dessas
escolas foi visitada, na semana passada, pelo ex-prefeito
Rudolph Giuliani, um dos responsáveis pela redução
do crime em Nova York e, agora, convidado a consultor de segurança
no Rio. É um lance com cheiro de marketing eleitoral
-o grande arquiteto da redução da violência
na cidade se chama Bill Bratton, cujas ações
tiveram bons resultados em Nova York, Boston e Los Angeles,
quando comandou seu policiamento.
Crianças e adolescentes envolveram-se em oficinas de
arte para arrumar e pintar as praças. Antes abandonados,
esses locais eram úteis para o crime.
Sabe-se que a pacificação depende de ações
urbanísticas -luz, postos de saúde, áreas
de lazer, transporte, coleta de lixo. É a fase final
do controle territorial.
Os casos do Jardim Ângela e da Cidade de Deus revelam
que, aos poucos, o Brasil vai dominando a tecnologia social
de combate à violência.
PS - Como se vê no caso da Cidade de Deus, o problema
da violência não é a droga. Mas apenas
a falta de polícia para evitar o confronto entre grupos
rivais e também a sensação de impunidade.
Coluna publicada no jornal
Folha de S. Paulo, editoria Cotidiano.
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