Para participar de uma inusitada
experiência musical no próximo domingo, cada
pessoa terá de levar seu próprio instrumento.
A condição, porém, é que esses
instrumentos sejam objetos imprestáveis e condenados
ao lixo: latas, garrafas, canos de ferro, tubos de plástico,
galões de água. "Será uma espécie
de reciclagem auditiva", compara o violonista Pepê
Mata Machado.
Pepê está convidando as pessoas a compor a "Sinfonia
do Lixo" na avenida Sumaré, fechada aos domingos
para o trânsito. Ali vão descobrir, em conjunto,
os sons que podem ser extraídos daqueles objetos aparentemente
inúteis. "É uma viagem ver os olhos das
pessoas quando percebem nascer um som inesperado." Essa
reciclagem é um pouco de sua própria história.
Até chegar ao som do lixo, Pepê, hoje com 33
anos de idade, teve de reciclar um ressentimento contra a
música. Nasceu numa família de muitos músicos:
sua bisavó já era professora de piano; seu irmão
mais velho, Paulo, exibia talento para flauta e, nas festas,
costumava ser o centro das atenções. "Confesso
que me sentia um marginal."
Os dois irmãos dormiam no mesmo quarto. Paulo não
se separava da flauta e, desde adolescente, passava horas
e mais horas no quarto estudando Bach e Vivaldi. Sem habilidade
para tocar instrumentos, Pepê até tentou cantar,
mas foi apelidado de "voz de trombone".
Pepê achava estranha a atração que exerciam
sobre ele, na adolescência, alguns sons estranhos: o
ranger da porta da garagem, por exemplo. "Na música,
sentia-me tão à margem como aqueles ruídos."
Foi viver nos Estados Unidos, onde cursou o ensino médio
e acabou sendo seduzido pela música. Por diversão,
tocava violão na rua. Veio morar em São Paulo,
levou o estudo de música a sério e acabou envolvendo-se
com o Teatro Oficina, dirigido por Zé Celso. Foi-se
rendendo ao gosto pela experimentação na descoberta
de sons extraídos de diferentes materiais e acabou
envolvido num projeto de reciclagem de lixo, a Oficina Boracea.
Surgiria, assim, a Orquestra de Plástico (projeto de
criação de instrumentos musicais com materiais
reciclados), que vai comandar a "Sinfonia do Lixo"
na avenida Sumaré. É uma combinação
harmônica: por afastar o estresse dos motores, aquela
avenida passou a emitir, pelos menos aos domingos, diferentes
sons: os das bicicletas, skates, caminhadas, carrinhos de
bebês ou bola batendo no chão. É assim
que o pedestre, tal qual Pepê, deixa de ser marginal.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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