SP tem
todas as condições de oferecer uma extensa programação
cultural de baixo custo ou gratuita
Um grupo de adolescentes entrou, na terça passada,
pela primeira vez num cinema.
Pelos comentários, eles pareciam se sentir num cenário
de ficção: o carpete, as poltronas confortáveis,
a imensa tela que se destacava na sala escura e a potência
do som. A ficção não estava, para eles,
na tela, mas fora dela. O filme era apenas uma extensão
de sua realidade.
Aquele grupo integrava caravanas de jovens que vieram das
áreas mais pobres da já empobrecida periferia
para assistir ao filme "Linha de Passe". Para muitos
deles, a fantasia já tinha começado quando entraram
num ônibus com ar-condicionado em direção
à rua Augusta, onde está o Espaço Unibanco.
É um excelente filme, mas a melhor tomada, disparado,
foi o deslumbramento de alguns dos espectadores, quando, depois
de acesas as luzes, apareceram os atores para o debate. Ouviram
um dos atores, Kaique Santos, dizer que nenhum dos seus amigos
da escola o veria no cinema.
A emoção e a agudeza dos comentários
brotavam da cumplicidade com a falta de perspectiva dos adolescentes
do filme, divididos entre as esperanças do futebol
e da religião.
Nessa imagem cinematográfica está o valor de
uma das poucas e boas inovações que aparecem
no debate eleitoral de São Paulo.
Todos os principais candidatos a prefeito colocaram em seu
programa a educação em tempo integral.
Mas a novidade é a proposta, também consensual,
de fazer dessa ampliação da jornada escolar
um encontro entre educação e cultura, levando
os estudantes a ocupar a cidade -se esse tipo de projeto vai
sair do papel é o que vamos ver. Nessa derrubada de
catracas, há uma enorme chance de atiçar a curiosidade
das crianças e dos adolescentes, ao tirá-los
de salas de aula e colocá-los no teatro, no cinema,
num parque ou numa exposição. Ilusão?
A cidade de São Paulo tem todas as condições
de oferecer uma extensa e intensa programação
complementar às escolas e, assim, aumentar o repertório
cultural de seus estudantes. Um dos exemplos, aliás,
é o anúncio, feito na semana passada, de que
a USP vai abrir seus laboratórios para alunos de escolas
públicas. Há muito mais atrações
gratuitas ou a preços populares do que se imagina.
O que ocorre é que estão fragmentadas e desconectadas.
Estou vendo isso com nitidez por causa de uma experiência
de jornalismo comunitário em que estou participando,
conduzida por recém-formados da USP, Mackenzie, Metodista
e PUC.
Pelas redes da internet, eles se propuseram a montar um mapa
digital (www.catracalivre.com.br)
das atividades gratuitas ou a preços populares da cidade
de São Paulo.
Os eventos culturais deveriam servir como pretexto para que
o leitor tomasse contato com as mais diferentes possibilidades
educativas, compartilhadas por estudantes e professores numa
autoria coletiva. Um exemplo: está acontecendo na Estação
Ciência, da USP, uma exposição gratuita
sobre o coração.
Pelo mapa, é possível, usando como estímulo
aquela exposição, fazer uma viagem pelo corpo
humano, num projeto criado pelo departamento de telemedicina
da USP.
Há um show de rock programado para hoje na galeria
Olido -o projeto permite que o evento presencial sirva como
aula à distância sobre a história do rock.
Resultado: uma enxurrada crescente de dicas.
Amplia-se a rede dos CEUs e das Fábricas de Cultura,
sem contar programas de música (Guri), dança
e teatro (Teatro Vocacional). Somem-se a isso as programações
das bibliotecas públicas e dentro das universidades.
Só nas próximas semanas vão surgir mais
três museus, impossíveis sem o apoio privado
-são os museus do futebol, da criança (Fundação
Catavento) e do meio ambiente (Praça Victor Civita).
Não faltam atrações em espaços
da Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Centro
da Cultura Judaica, Cosipa, Itaú e Unibanco, assim
como nas livrarias da Vila, Fnac e Cultura. Redes de cinema
oferecem ingressos por até R$ 1.
Abrem-se mais oportunidades com a decisão (isso se
for cumprida) de que um terço das atividades culturais
do Sistema S seja gratuito às escolas públicas.
Até mesmo em lugares improváveis, como num boteco,
faz-se um ponto de troca de conhecimento.
Foi do Bar do Zé Batidão, na zona sul, que se
espalhou a moda de saraus poéticos na periferia.
Tudo isso será um desperdício se o poder público
não souber fazer a ponte entre a cidade e a escola,
fazendo de uma visita a uma exposição algo mais
do que um evento episódico -esse desperdício
é a regra. Um caso a ser acompanhado são os
manuais entregues aos professores da rede estadual sobre como
tirar proveito de uma visita a um museu. Ainda não
dá para avaliar seu funcionamento.
Não separar educação e cultura, quebrando
os muros das escolas, é possivelmente o melhor caminho
para uma cidade sem catracas. O que se consegue é aquela
emoção dos jovens que foram pela primeira vez
ao cinema -se conheceram melhor vendo-se refletidos na tela.
PS: Quem ganhasse incentivos fiscais destinados à
cultura deveria sempre dar como contrapartida ingressos às
escolas públicas e, mais do que isso, com direito à
formação de professores. Se quiser conhecer
os mapas da cultura, mande um e-mail para catracalivre@catracalivre.com.br.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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