Numa experiência conduzida pelo
Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo,
adolescentes usuários pesados de maconha foram convidados
a ouvir suas falas gravadas nas sessões terapêuticas. Todos
iam regularmente ao consultório sob efeito da droga -ninguém
lhes pediu que fumassem antes das consultas. O resultado da
escuta surpreendeu tanto os pacientes como os pesquisadores.
Ao escutarem suas falas, os jovens se mostraram incomodados
com as longas pausas entre as palavras, as frases sem nexo,
as hesitações, gagueiras e um tom de voz que lhes pareceu
irritante. Imaginaram-se ridículos falando em público. Tal
recurso fez com que muitos deles percebessem o perigo das
alterações provocadas pela droga e aceitassem, com menos dificuldade,
tratamento. Notou-se também o aumento dos períodos de abstinência.
Para chegar a essas conclusões, compararam-se dois grupos,
cada qual com 32 participantes, todos da mesma idade, posição
social e intensidade semelhante no uso de maconha. Apenas
um deles submeteu-se à experiência das gravações. Evidentemente
esse truque é apenas um detalhe num tratamento que envolve
terapia, apoio familiar e, em muitos casos, remédios. O que
se revela, nesta experiência de comunicação, é o risco da
invisibilidade para os jovens -está aí também uma das razões
para a epidemia da violência no país.
Uma das orientadoras desses estudos, a professora Sandra
Scivoleto, chefe do Ambulatório de Adolescentes e Drogas do
Instituto de Psiquiatria da USP, está convencida de que existe
uma relação direta entre invisibilidade e dependência de drogas.
Invisibilidade significa a sensação de não pertencer a nada
ou a ninguém. "O adolescente que não consegue se destacar
nos esportes, nos estudos, nos relacionamentos sociais, pode
buscar nas drogas a sua identificação. A sensação inicial
do não-pertencimento é resolvida: o jovem passa a pertencer
ao mundo das drogas, onde adquire uma função."
Os efeitos da invisibilidade se tornam visíveis em estatísticas
sobre jovens, de classe média, que abusam das drogas, acompanhados
pelo Instituto de Psiquiatria da USP: 85% abandonaram os estudos,
64% furtaram ou roubaram, 47% indicaram algum nível de envolvimento
com o tráfico. A maioria deles tinha 15 anos de idade e usava
drogas nos últimos dois anos e meio.
Em várias experiências que conheci dentro e fora do Brasil,
está na cara como essa sensação de não-pertencimento corrói
um indivíduo, mina sua auto-estima e dificulta a criação de
laços afetivos. O abuso de droga cria então um círculo vicioso,
simbolizado na própria dificuldade de expressão pela fala.
É o que constatou, no consultório, a professora Sandra, acostumada
a cuidar de jovens das mais diferentes classes sociais. "A
capacidade de expressão é uma das principais ferramentas que
permitirão ao jovem se inserir no mundo, se reconhecer como
indivíduo único e estabelecer relações. Essa cadeia de relacionamentos
é o que o manterá num círculo virtuoso, não mais vicioso,
de construção e edificação. No momento em que ele se sentir
respeitado em seu espaço e função, passará a respeitar o outro."
Ela está certa. Testemunhei, em muitos casos, como a abertura
de canais de comunicação pelo vídeo, poesia, música, fotografia,
literatura, rádio, dança, artes plástica serviu como remédio
para interromper em jovens o círculo vicioso da invisibilidade.
Daí que fiquei convencido de que todas as escolas deveriam
sempre incluir nas suas atividades extracurriculares projetos
de comunicação.
Por sinal, está começando a prosperar em algumas universidades
brasileiras o estudo sobre o que se convencionou chamar de
"educomunicação". Formam-se educadores com habilidades de
comunicação e comunicadores com conhecimento de pedagogia.
Neste ano de sucessão presidencial, a violência estará certamente
no topo das discussões. Se quiserem falar sério sobre o tema,
os candidatos vão ter de estudar como funcionam bem programas
de protagonismo juvenil combinados com projetos de comunicação
para que se possam expressar.
P.S. Na íntegra, o depoimento
da professora Sandra, que acredito servir para ajudar
na reflexão de pais e professores. Na sua visão, o uso de
drogas, além de prejudicar o estudo, retarda e dificulta a
escolha da vocação profissional. Estão ali também mais detalhes
sobre a experiência na USP, que conta com a participação do
fonoaudiólogo Chistian César Cândido de Oliveira e Claudia
Scheuer, docente de fonoaudiologia do curso de medicina da
USP.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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