Do total
de alunos examinados em escolas públicas, 70% foram
encaminhados para algum tratamento de saúde
Um relatório reservado, preparado na semana passada
pela Secretaria da Saúde da cidade de São Paulo
com base em 11.381 exames médicos realizados em escolas
públicas, mostra o maior massacre perpetrado contra
crianças no Brasil. É a mais abrangente investigação
de saúde escolar de que se tem notícia e ratifica
estudos isolados já realizados no país.
Do total de alunos examinados, 70% tiveram de ser encaminhados
para algum tratamento. Ninguém sabia que eles tinham
alguma doença -e, se alguém sabia, nenhuma providência
foi tomada.
Equipes de médicos encontraram inúmeros casos
de uma doença chamada criptorquidia, que consiste em
falha na descida dos testículos para o saco escrotal.
Será que ninguém teve o mínimo espanto
diante de uma visível anomalia anatômica? Registraram-se
múltiplos casos de problemas de saúde, como
sopro cardíaco e obesidade. Foram determinadas 434
cirurgias urgentes.
Note-se que estamos falando de 434 cirurgias diagnosticadas
com base em 11.381 exames. É uma ínfima amostra
de um universo de 2 milhões de estudantes, considerando-se
apenas as redes municipal e estadual da cidade de São
Paulo. Imagine, então, o que deve acontecer num país
com 50 milhões de alunos nas redes oficiais de ensino,
a maioria dos quais vivendo em cidades onde as dificuldades
são maiores do que em São Paulo.
Era rigorosamente previsível o resultado do Enem (Exame
Nacional do Ensino Médio), divulgado semana passada,
ou seja, o abismo entre as escolas públicas e as particulares.
O relatório informa que, naquela amostragem, 80%
exibiam problemas dentários, que englobam desde cáries
até anomalias mais complexas. Tente prestar atenção
a qualquer coisa sentindo dor dente para perceber a dificuldade
de uma criança numa sala de aula. Pelo menos 10% dos
examinados necessitavam de acompanhamento fonoaudiológico.
Não é preciso ser um gênio para calcular
o impacto que causa a dificuldade de fala no aprendizado.
Os médicos detectaram que pelo menos 3% dos estudantes
precisariam de apoio psicopedagógico. "Foram observadas
crianças com distúrbios graves de comportamento",
afirma o relatório.
Essas informações foram obtidas porque, desde
o início deste ano, há um programa de saúde
escolar gerido pela Unifesp (Universidade Federal de São
Paulo) em parceria com a Prefeitura de São Paulo. Além
do número de doentes, aparecem falhas no sistema de
saúde. Detectou-se que uma das falhas é a falta
de pediatras nos postos de saúde. "Sabíamos
que as notícias seriam graves, mas não sabíamos
que seriam tão graves", reconhece o secretário
municipal da Educação, Alexandre Schneider.
A conclusão óbvia: as crianças têm
doenças que dificultam e até impedem o aprendizado.
Conclusão menos óbvia: por mais que se gaste
dinheiro com educação, muita gente simplesmente
não vai aprender e estará condenada à
marginalidade.
A discrepância brutal entre as notas obtidas no Enem
pelos alunos das escolas privadas e pelos das públicas,
como se divulgou na semana passada, tem a ver não só
com a qualidade dos professores ou do currículo. Como
esse teste é menos focado em memorização
e mais em associação de informações
de diferentes matérias, pesa ainda mais a bagagem do
estudante. Essa bagagem abrange o número de livros
em casa, os estímulos com brincadeira desde a primeira
infância, leitura de jornais e de revistas, acesso à
internet, viagens, concertos, teatro, cinema, visita a museus
-e, evidentemente, a saúde.
Um grande número de crianças doentes recebendo
tão pouca atenção é um problema
que está no nível de barbárie da prisão
de uma adolescente numa cela com 20 homens, como ocorreu em
Abaetetuba (PA).
PS - Ninguém levou a sério projeto lançado,
na semana passada, pelo senador Cristovam Buarque, que obriga
os governantes e parlamentares a matricular seus filhos apenas
em escolas públicas. Não se levou a sério
porque sabemos que o projeto jamais seria aprovado, seja por
falta de apoio político, seja por questões legais.
A provocação, todavia, é séria.
Conviver com o descalabro de tanta gente doente silenciosamente
só é explicável porque os grupos mais
poderosos estão muito distantes da educação
pública, acompanhada de longe, apenas pelos frios indicadores.
A verdade, porém, é que, depois desse documento,
feito com base nos exames da Universidade Federal de São
Paulo, ninguém mais pode alegar ignorância dos
fatos, o que torna todos os governantes cúmplices do
problema - tão cúmplices quanto os policiais
do Pará, que sabiam que uma adolescente estava numa
cadeia com 20 homens.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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