A tela grande está abrindo
espaço nas favelas cariocas. Neste sábado, 18,
o Complexo da Maré (Zona Norte do Rio) assiste ao documentário
Fala Tu, na Lona Cultural do Piscinão de Ramos, dentro
do projeto Cine Pop Brasil. Não se trata de uma atividade
isolada. A idéia dos organizadores é levar diversos
filmes a 20 comunidades e ainda abrir oficinas para ensinar
aos moradores como se movimenta a indústria por trás
das câmeras.
Além da Maré, entram ainda no itinerário
morros próximos ao entorno do Aeroporto Internacional
Tom Jobim, na Ilha do Governador, na vizinhança do
Complexo.
O documentário Fala Tu, do diretor Guilherme Coelho,
acompanha o cotidiano de três moradores da Zona Norte
carioca que, em comum, têm a paixão pelo rap.
Antes e depois da sessão, haverá uma dessas
oficinas de cinema com professores do projeto, e apresentações
da companhia Top Dance e de 20 crianças da Cia. de
Dança Arco-Íris, ambas da comunidade.
“Como serão diversas atividades, estamos chamando
o evento de “Sábado cultural”, diz a assessora
de imprensa do Instituto Terra Nova, instituição
responsável pela administração da Lona
Cultural do Piscinão, Cristiane Lobo.
Na fila do gargarejo
A possibilidade de assistir a um filme numa tela grande
de cinema, de graça e pela primeira vez na vida, está
deixando Ademir da Costa Paiva, 34 anos, na maior expectativa.
“Nunca botei os pés num cinema. Estou curioso
para saber como é esse tal de cinema de que todo mundo
fala, quero conferir se é mesmo uma enorme TV, como
dizem”, planeja.
Por conta de ter perna e mão atrofiadas, Ademir tem
dificuldade de locomoção e uma dificuldade ainda
maior em arranjar emprego. Para quem vive de biscates como
ele, o preço de um ingresso de cinema é uma
verdadeira fortuna.
Tudo isso é motivo para que Ademir pretenda estar
às 19h da noite em ponto na Lona do Piscinão.
“Quero ser o primeiro da fila. Vou até sair um
pouco mais cedo de casa”, diz. Ademir mora na entrada
da Praia de Ramos, a uns 200 metros da Lona. “Acho que
vai ser muito legal. Como nunca fui, tomara que eu goste do
filme”, sonha.
Quem está ainda mais satisfeito com a repercussão
que a iniciativa tem levantado na Maré é o cineasta
Iberê Cavalcanti, idealizador do projeto. “O nível
de interesse por lá é enorme”, confirma.
O Cine Pop Brasil nasceu com o lançamento do último
filme do diretor, Terra de Deus, em 2000, quando em vez da
habitual exibição em circuito comercial, Cavalcanti
preferiu percorrer cidadezinhas de seis estados brasileiros,
em que salas de cinema ainda são um luxo inexistente.
“Estivemos em mais de 28 cidades de Goiás, Paraná,
São Paulo, Bahia, Minas Gerais e Tocantins, num total
de 35 mil espectadores”, fala Cavalcanti. Daí
para fazer o mesmo no Rio foi mais um passo. Com aprovação
da Lei Rouanet e o incentivo da lei do ICMS, no Rio, o cineasta
começou a transformar o Cine Pop Brasil em realidade.
Para aprender cinema
No que era um galpão abandonado do Sesi, na comunidade
de Bento Ribeiro Dantas, também na Maré, foi
montado um estúdio-escola, com 1.500 metros quadrados.
Ali passarão a ser ministradas oficinas profissionalizantes
e de criação. Isso inclui desde operação
de câmera digital à pintura espontânea,
edição digital, produção cenográfica,
música para cinema, maquiagem, projeção
cinematográfica e contadores de histórias.
Com este mesmo espírito, além das oficinas
profissinalizantes na área audiovisual, o estúdio-escola
contará também com videoteca e biblioteca. “O
que nos diferencia são essas atividades regulares e
permanentes”, fala Cavalcanti.
Depois do primeiro módulo de oficinas, com seis meses
de duração mas ainda sem data definida para
começar, os alunos que se destacarem devem ser aproveitados
para atuar no centro de produção, a funcionar
no mesmo local, para montar, sob orientação
de profissionais, vídeo-jornal sobre os acontecimentos
da comunidade.
Paulinho Esperança, 50 anos, um dos líderes
locais, também está colaborando na organização
do projeto. “A idéia é permitir a pessoas
da comunidade o conhecimento de atividades ligadas ao cinema
e até possibilitar sua entrada no mercado”, afirma.
O coordenador da Lona do Piscinão, Laurindo Santos
Junior, 30 anos, quer levar o Cine Pop também à
comunidade da Roquete Pinto.
Agente de saúde do posto Américo Veloso, na
Praia de Ramos, Carla dos Santos, 26 anos, não vê
a hora de participar de uma dessas oficinas. “Estou
surpresa com tudo isso, porque não vi, nem ouvi nenhum
divulgação sobre a exibição do
filme. Mas estou achando a idéia ótima. Como
gostaria de fazer teatro, se tiver numa dessa oficinas lá
do estúdio-escola, vou me inscrever”, anima-se.
E logo completa: “Tudo o que envolve cultura é
bem-vindo na comunidade; somos carentes de cultura aqui na
Praia de Ramos”, diz.
Futuros cineastas
O estudante Alex Adolfo, de 25 anos, assistente de salva-vidas
nos finais de semana no Piscinão, é outro que
está de olho na possibilidade de freqüentar o
estúdio-escola. Fã de cinema, desde que viu
o filme Cidade de Deus, botou na cabeça montar um telão
e produzir um filme sobre a história da Praia de Ramos
e Roquete Pinto. Isso foi há uns três anos. “Mas
faltava filmadora; a que consegui emprestada não tinha
bateria”, conta.
O que Alex pretende agora é ter oportunidade não
só de aprender os macetes de fazer um documentário
como mostrar seu projeto à direção do
Cine Pop. “Será uma oportunidade e tanto poder
participar dessas oficinas”, anima-se. Mais do que meramente
assistir a Fala Tu, Alex quer mais. “Quero até
ver se consigo uma bateria para poder filmar a reação
das pessoas nesta apresentação”, planeja.
O técnico de máquinas de costura Alessandro
Pessoa da Rocha, 29 anos, que nas horas vagas é guitarrista
da banda Acesso Restrito, quer muito ver o filme. Mas quer
também estar presente num dos próximos eventos.
“Se amanhã ou depois houver chance, gostaria
de poder apresentar minha banda num evento desses, pra divulgar
nossas músicas. A comunidade está mesmo precisando
de eventos culturais como esse”, fala.
O que não chega a ser tão impossível,
já que segundo a assessora de imprensa do Terra Nova
a Lona do Piscinão está aberta à comunidade.
“Queremos que os moradores sintam o espaço como
deles, tanto para cuidar como para apresentação
de artistas da comunidade. Neste sentido, contamos com apoio
das associaçoes de moradores da Roquete Pinto e da
Praia de Ramos, que nos ajudam a formar essa programação”,
explica Cristiane.
Além disso, a administração do Piscinão
pretende não só tornar permanente a exibição
dos filmes do Cine Pop, como manter a parceria com o projeto
BR em Movimento, para assim ocupar o espaço durante
todos os sábados do mês. “Estamos abertos
a tudo. Queremos que a área seja para lazer, mas também
sirva como estímulo à cultura brasileira. Nossa
idéia é conseguir também trazer alguns
atores dos filmes apresentados à comunidade para aproximar
o público do que tem acontecido de novo na cultura
brasileira”, adianta a assessora de imprensa.
Cinema volante
Para o cineasta Iberê Cavalcanti, que se diz um
dinossauro do cinema brasileiro, com mais de 40 anos de profissão,
toda essa movimentação é mais do que
positiva. “Pra mim está claro que distribuição
e exibição são questões decisivas
para a atividade no Brasil. Com 180 milhões de habitantes,
um país com essa capacidade criativa não pode
ter um mercado de apenas 1600 salas de cinemas convencionais,
cada uma com cerca 300 lugares, às vezes até
menos. E este mercado ainda é em grande parte ocupado
pelo cinema americano”, explica.
Entre os diversos aspectos deste panorama, Cavalcanti aponta
um: “A consequência perversa é que essas
salas migraram para os shoppings e produziram uma exclusão
social automática. Só vai ao cinema quem tem
dinheiro para ir ao shopping. Isso resulta no distanciamento
da grande maioria do público brasileiro do cinema,
em particular do cinema nacional”, fala.
Neste quadro, o Cine Pop entra como forma de reduzir este
distanciamento e formar novas platéias. “As favelas,
em geral, são estigmatizadas pela grande mídia.
Criou-se uma histeria em torno delas. Mas aqui na Maré,
ao contrário do que dizem, temos uma comunidade toda
asfaltada, saneada, com uma rede de colégios. Estamos
montando aqui um centro de formação cultural
permanente”, diz.
Nesta sentido, Cavalcanti não vê a hora de se
chegar a ter uma rede de cinema volante, circulando regularmente
pelas 20 comunidades. A idéia é expandir cada
vez mais o projeto a outras comunidades, adaptá-lo
para outras regiões. “Sonho com uma grande rede
brasileira de cinema alternativo, que sirva de complemento
a esta rede comercial paquidérmica”, afirma.
“Também precisamos nos apropriar das novas tecnologias
para atender a nossas necessidades. O próximo passo
é o satélite, com o cinema digital, em que uma
central no Rio ou São Paulo envia as produções
para o resto do país, o que é fortemente colonizante.
A nossa idéia é que as comunidades também
possam apitar nesta programação”, conclui.
As informações são
do site Viva Favela.
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