Quando criança, Quézia
da Silva Santos sempre ouvia que tinha o maior talento para
o desenho. Sua paixão, porém, eram as aulas
de Ciências. Hoje, aos 20 anos, ela pode dizer que conseguiu
unir as duas coisas. Moradora de Manguinhos, ela emprestou
seus dotes de desenhista para fazer o tabuleiro do livro-jogo
de educação socioambiental Unidos Para Construir
um Mundo Melhor. Lançado em abril com tiragem de 900
mil exemplares, pela editora Gaia, o livro é um exemplo
de metodologia para introduzir a educação ambiental
nas escolas.
A ilustração do livro foi feita quando Quézia
tinha ainda 14 anos, e estudava na Escola Municipal Orsina
da Fonseca, na Tijuca, zona norte carioca, durante as aulas
extra-classe do Clube de Ciências. O projeto é
fruto de um trabalho interdisciplinar e cooperativo, que ajudou
a amadurecer valores de professores e de alunos como Quézia.
Quem joga garante: o método passou no teste, provando
que a temática ambiental pode ser abordada em todas
as disciplinas.
O entusiasmo dos alunos com o projeto foi imediato. Para
desenhar o tabuleiro, a estudante Quézia foi buscar
inspiração no livro Agenda 21 para crianças.
Após redesenhar cerca de 6 vezes uma roda de crianças
em torno da Terra, ela chegou à versão definitiva
que ganhou de vez "a concorrência". A recompensa
foi boa. Além dos R$ 400 recebidos pelos direitos autorais
e de ganhar dois kits do livro-jogo, ela passou a distribuir
autógrafos.
Projeto da professora de biologia e chefe do Serviço
de Pesquisa em Educação do MAST - Museu de Astronomia
e Ciências Afins, Maria das Mercês Navarro Vasconcellos,
a metodologia está afinada com a proposta do Ministério
do Meio Ambiente de inclusão de temas ambientais de
maneira transversal, como prevêem os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN). Segundo Maria das Mercês,
o jogo mostra como a escola pode contribuir para a compreensão
das causas, conseqüências e possíveis soluções
de problemas socioambientais.
"Gostaria de auxiliar, com esse trabalho, na formação
de um currículo em que as disciplinas sejam pensadas
em função das questões levantadas pelas
crianças", diz a professora. O objetivo do jogo
é fazer professores e alunos perceberem "que educação
ambiental não é uma disciplina, mas uma postura
diante da realidade. É a educação em
si", diz a professora, que há quatro anos utiliza
o invento em escolas municipais, cursos e projetos no qual
trabalha.
A idéia do livro-jogo surgiu a partir de um diagnóstico
socioambiental feito com estudantes de 25 escolas públicas
municipais, em 1997. Os alunos respondiam às seguintes
questões: como você gostaria que fosse - e como
se encontram hoje - o planeta, o Brasil, o lugar onde você
mora e a escola. Eles deveriam responder, ainda, o que a escola
pode fazer para mudar cada uma destas realidades.
O resultado da pesquisa mudou os planos de Mercês:
"Alguns alunos falaram de pais que trocam crianças
por um prato de comida, de pais que estupram os filhos. No
Ciep próximo ao morro do Cantagalo, por exemplo, alguns
acrescentaram ao questionário a frase: 'E por favor
nos ajude'. Encarei isso como um pedido de socorro. Foi o
suficiente para decidir que o projeto não ficaria só
na pesquisa. Era preciso criar uma metodologia para trabalhar
essas questões em sala de aula".
Mentir para si mesmo
Elaborada a partir de um ano de reuniões entre
alunos e professores, a metodologia trata dos cinco principais
temas detectados no diagnóstico: falta de água
potável e poluição da água; diminuição
da biodiversidade; fome; consumismo e produção
de lixo; e abandono da educação. No jogo, coerente
com a proposta de construção de um planeta mais
solidário, não há competição,
mas cooperação. A luta que se trava é
de todos os jogadores contra o tempo.
O objetivo é conseguir virar, em uma hora, todas as
32 cartas que representam os principais problemas do planeta,
a partir do erro ou do acerto de questões propostas.
Mas o jogo não é só para quem sabe solucionar
problemas. Ele também coloca em questão valores
e atitudes dos participantes. Neste caso, a resposta da maioria
é que conta para virar ou não o cartão
do problema para o lado da solução correspondente.
A primeira edição do livro-jogo foi viabilizada
após encomenda de 500 exemplares pela ONG CAMPO - Centro
de Assessoria ao Movimento Popular, que realiza o projeto
de educação ambiental Convívio Verde
em escolas municipais no entorno da Reserva Biológica
do Tinguá. Antes, o jogo era feito de maneira artesanal.
Certa vez, quando jogaram com professores, todos afirmaram
dar preferência a produtos que não agridem o
meio ambiente na hora das compras. Era mentira. "Uma
pessoa do grupo desmentiu a maioria, dizendo que esses produtos
costumam ser mais caros. Então todos foram sinceros
e, como nesse caso valia a resposta da maioria, a rodada foi
perdida", conta Mercês.
Aluna ensina professor
Quézia ficou toda feliz quando viu o sucesso
que seu desenho tinha feito: "No dia do lançamento,
um professor me pediu para fazer até dedicatória!
Eu nem estava esperando receber dinheiro nenhum. Gostava de
chegar nas escolas e ouvir a Mercês falar para os professores
que fui eu quem fez o desenho do tabuleiro. Na hora eu ficava
meio com vergonha, mas na verdade isso era um presente para
mim. Era engraçado ver que eu, uma aluna, estava ensinando
os professores a jogar!", diverte-se ela.
Moradora da Vila dos Democráticos, na comunidade de
Manguinhos, Quézia fez bom proveito do dinheiro recebido
com o trabalho: ajudou o pai a pagar a conta de telefone e
comprou roupas para ela e para a irmã Queila. "Desde
que comecei a trabalhar, aos 17 anos, sempre ajudei em casa",
diz ela. No currículo ambiental, Quézia contabiliza
trabalhos no laboratório de cultivo de plantas da UERJ
e na Agência de Desenvolvimento Local da Secretaria
Estadual de Meio Ambiente. Mas foi no Clube de Ciências
da escola que sua paixão ganhou mesmo impulso.
"Antes eu gostava do meio ambiente, mas não cuidava.
No Clube aprendi a importância de se reduzir o consumo,
reutilizar e reciclar os produtos. Quando vejo as pessoas
jogando lixo na rua, escovando os dentes com a torneira aberta,
me incomodo", conta. Quando a pia da cozinha de sua casa
estava com uma goteira, ela foi a primeira a encontrar a solução
até que seus pais, que trabalham como guardadores de
carro, tivessem condições de pagar o conserto.
"Ninguém estava ligando para o desperdício
de água. Depois, quando a água falta, todo mundo
reclama. Então eu tive a idéia de encher várias
garrafas, só com o que saía da goteira, e usava
tudo para lavar a louça", lembra.
Pipa e bola de gude
Antes do projeto, a estudante não via o ser
humano como parte integrante do meio ambiente. "Agora
sei que o homem faz parte, meio ambiente não é
só a paisagem e me preocupo com isso no dia-a-dia".
Quando criança, conta Quézia, ela era que nem
um moleque: " jogava pipa, bola de gude, bola. Hoje em
dia a maioria dos meus amigos está no mundo do tráfico,
mas faço questão de chamá-los pelo nome,
porque os apelidos que eles têm, ganharam quando viraram
bandidos", lamenta.
Diretor da escola Orsina da Fonseca na época em que
o livro-jogo estava sendo elaborado, Fernando Jesus Soeira,
professor de Português, também aprova o invento.
"É muito melhor fazer o aluno se sentir participante
da situação do que ele receber uma situação
já pronta. Assim ele tem a possibilidade de discutir
uma coisa que acha importante. Em geral, o professor fica
muito preso às suas matérias, e o jogo foi uma
forma lúdica de demonstrar interdisciplinaridade",
diz ele, que na disciplina de Português já falou
da poluição visual provocada pelas pichações
nos muros de casas e escolas.
Na hora de elaborar a metodologia, Mercês se inspirou
nos conceitos do físico austríaco Fritjof Capra,
um dos fundadores do Centro de Ecoalfabetização
de Berkeley, na Califórnia, EUA. Assim como Capra,
a professora está certa de que educação
ambiental pode ajudar na construção de um mundo
ecologicamente e socialmente sustentável. "A mesma
lógica que leva ao desequilíbrio social leva
ao desequilíbrio ecológico. Falo da lógica
do capitalismo, da competição, da busca desenfreada
por dinheiro.
Foi exatamente isso que o jogo quis demonstrar. É
um processo difícil, mas várias escolas estão
neste caminho. Para funcionar bem, é preciso ter um
projeto político pedagógico, como o que foi
feito na construção do jogo, onde todos opinaram",
conclui. Com todo o sucesso do livro, Quézia continuou
modesta: "Aconteceu de prevalecer o meu desenho, mas
vários alunos também deram boas idéias".
Ela sonha em ser biológa. Diz que desenhar "é
lazer". E já procura uma terceira via. Neste segundo
semestre, começa a estudar informática na faculdade
da Vila Olímpica da Mangueira. "Ainda não
desisti do meu sonho, mas acho que a Informática vai
me dar mais oportunidade de trabalho".
JULIA DUQUE ESTRADA
do site Eco Pop
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