O jargão
das ONGs e a disseminação do marketing da responsabilidade
social do setor privado provocam uma "barafunda mental"
na discussão sobre a miséria e funcionam para
legitimar uma nova "fronteira de negócios"
em áreas descobertas pelo Estado, hoje ocupado exclusivamente
em garantir o pagamento da dívida. Segundo o filósofo
Paulo Arantes, este é um dos traços definidores
da "questão social" na era petista.
Folha - O PT mobilizou durante duas décadas
uma energia social pela mudança que agora, no poder,
está tratando de frustrar. A ressaca que começa
a pipocar por aí na esquerda é de que tamanho?
Paulo Arantes - A ressaca para a esquerda
não foi tão destrutiva como se temia, estão
quase todos vivos, embora a ficha de cada um deva cair no
seu devido tempo.
Mas houve uma outra ressaca. Os mais bisonhos quando se recordam
ainda falam em momento mágico, mas seria muito mais
prudente denominar "desrecalque localista". E que
ainda pode voltar, pois se trata de uma percepção
pública administrável por um bom marketing.
Lembro que há meio século Antonio Candido assim
batizou a redenção, pela impregnação
da sensibilidade cultivada local pelos valores da modernidade
artística e cultural, a reabilitação
dos componentes mais vexatórios e por isso mesmo mais
recalcados de nossa nacionalidade tida como primitiva. Pois
o movimento que culminou na eleição de Lula
pode ser encarado como um desrecalque desta mesma ordem, porém
de um alcance "localista", praticamente do tamanho
do Brasil profundo, e não tão profundo assim.
Os profundérrimos de plantão encheram a boca
com aquelas besteiras que brotam do fundo da alma. O ornitorrinco
começou a devanear, o animalzinho simpático.
Foi um tal de matar as saudades do Brasil, de voltar a gostar
do Brasil, de redescobrir a poética das formações
incompletas, o charme inconfundível das sociedades
felizmente mal-acabadas.
Remakes de alvoradas no morro, compositores vestidos de branco
como anjos do tempo e da paciência. Como os milagres
acontecem, éramos de novo uma sociedade nacional. Mas
quem anunciava essa nova procissão de milagres era
a mesmíssima elite em estado de secessão, rentista
e dolarizada, embalada pelas novas promessas de um capitalismo
de fundos de pensão. Desrecalque de alívio.
O não-acontecimento de uma ruptura que nunca estivera
nos planos de ninguém, outro suave fiasco, esse realmente
histórico. Abortara afinal a cultura da reclamação.
Mede-se o respiro pelas comparações cretinas
recorrentes. Na Venezuela, a gesticulação de
um bufão deflagrara uma contra-revolução,
assim sem mais. Na vizinha Argentina, o vírus populista
do ressentimento consumira as derradeiras energias. O Brasil
se transformara enfim numa ONG torrencial. Vamos ver a quem
será apresentada a conta.
Folha - A quem será?
Arantes - Sabe-se até bem demais.
A economia nacional resume-se hoje ao serviço da dívida
para assegurar a renda mínima do capital, como diz
o João Sayad, o qual obviamente -o capital, não
o João- não tem o menor interesse que ela algum
dia seja paga.
Seria o caso até de processar o Estado por lucros cessantes.
Deu-se com isso a progressiva terceirização
de funções do Estado por uma fauna de ONGs,
ressalvadas as boas almas de praxe. Verdadeiras máquinas
de sucção e repasse de verba, e tome informalização
do trabalho. Tudo isto é sabido, não é
de hoje que o sopão do terceiro setor é engrossado
por patronesses ao lado de cooperativas de fachada, banqueiros-cidadãos,
corretores de inclusão social e por aí afora,
nessa nova fronteira de negócios. Mas o principal benefício
é sobretudo ideológico.
A barafunda mental disseminada pela parolagem da responsabilidade
social e outros malabarismos de marketing. Eficácia
ideológica assegurada por uma linguagem híbrida
-novo jargão da autenticidade. A fome de transcendência
parece ter voltado com força total com a "sociedade
civil". Medida profilática de higiene política:
todo o dia ao se levantar prometer não empregar a dita
cuja e seus derivados e similares.
Como isso ainda é remoto no Brasil, mas não
a sua aura, deixo de lado outra dimensão-chave do terceiro
setor, o negócio "humanitário" e os
"campos" que vai semeando mundo afora nas fronteiras
do novo imperialismo. Foi nesse terreno que no fim dos 70
a nova esquerda, hoje nova direita, começou a embarcar
na "era da emergência", e emergência
como sucedâneo da ultrapassada política do confronto,
movida a ressentimento e outras paixões tristes.
O novo espírito do capitalismo mora neste jargão
da autenticidade empresarial-cidadã, gerada entre o
novo management flexível e as sobras ritualizadas do
ideário meia-oito, a derradeira isca a pôr de
joelhos a esquerda agradecida.
Folha - E o governo do PT, como entra nessa
história?
Arantes - Escaldado pela derrota de 89,
o PT já pegou este bonde andando. Aos poucos o encaixe
se tornou perfeito. Quando os distraídos abriram os
olhos, CUT e Bank Boston já estavam namorando firme.
O Banco Central foi apenas mais uma parceria. A novidade,
visível na atual cinematografia onguista, consiste
na maneira pela qual o acervo do desrecalque localista do
momento injetou matéria brasileira estilizada neste
jargão da autenticidade que circula entre as classes
confortáveis do país e do mundo, e logo chegará
à doméstica de celular via novela e marketing
interativo. Quando o populismo lulista precisar arregaçar
as mangas em defesa do espólio recente, a linguagem
já estará prontinha da silva. É o que
lhe resta. Mais as bolsas-padrão Banco Mundial.
Como de desenvolvimento nunca ouviu falar, tanto é
que deixou que sitiassem o velho Banco do Largo da Carioca,
e a macroeconomia, outra enjeitada, ficou com os seus donos
de sempre, sobrou para oferecer ao distinto público,
como prata da casa, a figura do "operador" de palácio
e Congresso, mas este qualquer bicheiro derruba, em geral
a pedidos.
As informações são
da Folha de S.Paulo.
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