O barraco de Maria Argentina da
Conceição, 72 anos, era de madeira, sem ventilação
e quando chovia a água passava pelo meio da sala. Prestes
a desabar e escorada por um pedaço de madeira, a casa
também não tinha banheiro. O vaso ficava no
lado de fora, num lugar sem paredes, exposto ao tempo e às
vistas de quem passasse. Tudo isso ficou no passado. Graças
ao dinheiro arrecadado em bingos, festas, rifas e feiras,
organizados pelo projeto Solidariedade Sem Limites, essa moradora
da favela São Cosme e Damião, em Realengo, está
às vésperas de ganhar uma casa novinha em folha.
E não vê a hora de se mudar.
O que faz com que Dona Argentina não caiba em si de
contentamento. “Moro aqui há 40 anos. Quando
vim pra cá, meu primeiro marido logo me abandonou com
as crianças. E ainda vendeu nosso barraco, me deixando
sem ter pra onde ir. Foi um pedreiro daqui que me ajudou,
construindo um barraquinho pra mim. Foi onde vivi até
hoje. Mas depois de tanto tempo a casa estava quase caindo.
Quando pensei que ia reviver a angústia de não
ter rumo novamente, a dona Lúcia apareceu pra me ajudar.
Por isso eu digo que Deus é muito bom”, conta.
Ela fala de Lúcia de Fátima Freire de Oliveira
Barreto. Moradora do mesmo bairro da Zona Oeste carioca, essa
dona de casa de 44 anos teve a idéia e o empenho para
criar o Solidariedade sem Limites há três anos.
Ao ingressar na faculdade de Pedagogia, ela resolveu criar
uma forma de complementar projetos sociais já existentes.
“Quando comecei a estudar algumas iniciativas e compará-las
com os resultados alcançados, vi que bons projetos
apresentavam falhas. Eu não queria apenas criticar
o que já existia, mas melhorar os resultados. Vi que
não basta ajudar de forma assistencialista; é
preciso que se aja dentro das famílias”, explica.
Passou então da teoria à prática. Numa
visita à associação de moradores da São
Cosme e São Damião, uma das favelas mais pobres
de seu bairro, ela pediu que lhe indicassem as 20 famílias
mais necessitadas da comunidade. “Queria saber o que
eles mais precisavam e ver como poderia ajudar”, conta.
Sua prioridade foi para os casos mais críticos: crianças
sem pais, mães solteiras e com muitos filhos, idosos,
famílias sem um chefe. “Pedi 20, mas ganhei 25.
E nestas famílias, há 60 crianças e 12
idosos. Quase achei que não ia dar, mas depois vi que
mesmo em ritmo lento eu poderia sim fazer alguma coisa”,
afirma.
Duas famílias em especial
O passo seguinte foi conhecer de perto todas as famílias,
selecionando, caso a caso, os mais emergenciais. As principais
dificuldades comuns aos moradores da Cosme e Damião,
Lúcia pôde ver de perto. “A fome, a falta
de emprego, as condições desumanas das moradias
úmidas, pessoas com doenças respiratórias
por dormirem no chão e em barracos pouco ventilados,
a desesperança por uma melhoria de vida, nenhuma perspectiva
de futuro e histórias de vida marcadas por dificuldades.
Tudo isso me chocou”, lembra.
Lúcia se impressionou particularmente com duas histórias.
“Fiquei chocada ver duas pessoas idosas, a Dona Argentina
e o marido, tendo que sobreviver sem a menor condição.
Como uma senhora conseguia tomar banho na frente de quem passasse?
Era uma vida humilhante!”, diz. A indignação
fez com que Lúcia desse prioridade ao caso e providenciasse
a reconstrução da casa do casal.
Outra família que chamou sua atenção
foi a de cinco irmãos adolescentes e duas crianças,
filhos da jovem mais velha. Juliana Patrícia Oliveira
de Souza, de 19 anos; Cíntia Lima Gomes, de 17; Delson
Lima Gomes Júnior, de 15; Carlos André Oliveira
Santos, de 12; Yuri Oliveira Santos, de 8; Thaís Eduarda
Oliveira Santos, de 5, e João Vítor, de um ano,
filho de Juliana, têm a vida marcada pelo sofrimento.
“Sem pai nem mãe, eles tentam sobreviver sem
qualquer referência ou orientação”,
diz Lúcia.
No início, Lúcia promovia bingos e rifas. Os
bingos já garantiram a distribuição de
mais de 700 brinquedos – alguns deles doados –
à garotada da comunidade do São Cosme São
Damião, no Dia das Crianças. Ano passado, a
abertura e divulgação oficial do projeto aconteceu
com a organização de uma festa de Natal. “Saí
pela vizinhança, batendo de casa em casa e consegui
72 famílias que aceitaram vestir e presentear uma pessoa
da favela, além de doar um prato para a ceia. As crianças
ganharam roupas e brinquedos e os idosos roupas, objetos e
produtos de higiene pessoal”, conta a dona-de-casa.
Ajudando e faturando um troco
Apesar da alegria que levava às famílias
da favela, Lúcia sabia que nada daquilo resolvia os
problemas mais críticos. “Era preciso gerar mais
dinheiro e montar um caixa que bancasse nossas primeiras realizações.
Foi aí que resolvi promover as feiras”, diz Lúcia.
Hoje elas são a maior fonte de arrecadação
do projeto – quase 15 já foram realizadas. Funciona
assim: todas as sextas à noite e domingos de manhã,
com autorização da prefeitura, a Rua Bandeira
de Melo - também chamada de Rua 5, em frente ao Campo
São Luiz – é fechada e tomada por barraquinhas.
Ao todo são 30. Cada uma delas pagando R$ 10 (doces
e salgados) ou R$ 15 (as demais) para participar da grande
feira em que a praça se transforma.
Moradoras de Realengo, Tânia Cristina Barbosa de Oliveira,
de 41 anos, e Elis Alves Rios da Silva, de 37, trabalham voluntariamente
no projeto. “A gente se encarrega de organizar a arrumação
das barracas, fazer as cobranças e incentivar a participação
dos barraqueiros. Fico feliz porque as feiras não só
ajudam aos moradores da favela, como a quem vive de vendas,
e até mesmo a própria região, que quase
não tem atrativos”, diz Tânia Cristina.
É o caso de Célia Alves Cavalcante, de 58 anos,
que vende batata frita, doces e empadas, contribui com o projeto
e ainda fatura um extra. “Antes só vendia em
casa.. Quis ajudar e aproveito também para faturar
um troquinho. Acho que isso é que é lucrar dos
dois lados, né?”, anima-se. E fica ainda mais
entusiasmada ao ver que a cada dia de feira, consegue ganhar
cerca de R$ 120.
Dono de um trailer no Campo São Luiz, Erly Ramos
da Costa , de 47 anos, destaca que participar de um ato solidário
é o mais importante. “Tinha gente que dizia que
a feira ia diminuir o meu movimento, mas eu não dei
ouvidos a isso. Ainda participo pagando como um barraqueiro
só para contribuir. Tiro meu chapéu para atitudes
como a de Lúcia”, diz o comerciante.
Rebuliço na favela
O lucro das feiras tem destino certo. Para a casa
de dona Argentina, os gastos de R$ 2.330 foram com material
de construção e mão-de-obra de pedreiro
e ajudante. Fora as doações conseguidas com
a realização de um bingo organizado pelo projeto.
As casas de material de construção da região
e outras pessoas interessadas em ajudar contribuíram
com sacos de cimento, mais de um milheiro de tijolos; areia;
pedra; canos; azulejo; portas, janela; louça sanitária.
“A obra ainda não tem prazo para terminar pois
é preciso que as feiras continuem acontecendo para
continuarmos os trabalhos”, diz. Em dois meses, a nova
casa foi levantada. Agora aguarda apenas acabamento.
Enquanto isso dona Argentina e a família aguardam
na casa de uma vizinha, que sem resistência os acolheu.
“Estou aguardando por um sonho realizado. Agora vou
viver como gente”, diz dona Argentina bastante emocionada.
Ela, o marido Aldir da Silva, 72 anos, a filha Rosária
Soares, de 43 e o neto Washington, de 16, sobrevivem apenas
com o dinheiro de sua aposentadoria e do pouco que Aldir consegue
como catador de lixo. “Se muitas vezes não dá
nem para comer, como podíamos pensar em fazer obra?”,
questiona.
A reforma da casa de dona Argentina causou um rebuliço
na favela. Várias outras famílias procuraram
Lúcia, tentando convencê-la de suas necessidades.
“Tenho que explicar que a prioridade é para os
casos mais críticos. Afinal, estou tentando resolver
os problemas de risco de vida e não apenas de embelezamento
das casas. No fim, eles acabam entendendo”, explica.
Em outros casos, como o dos irmãos órfãos,
a ajuda não pode ser só material. “Conheci
Juliana quando comecei a visitar a comunidade. Ela já
tinha o João Vítor e estava grávida de
mais uma criança. Mais do que ajuda financeira ela
pedia socorro por não conseguir criar seus irmãos.
Como nunca tinha recebido cuidados também não
aprendera a cuidar de ninguém, o que dirá de
sete pessoas?”, conta Lúcia.
A mãe das crianças, que morava na Mangueira,
passou por uniões desfeitas com homens violentos, dois
deles traficantes. Juliana foi estuprada pelo terceiro marido
da mãe aos 12 anos. Quando os irmãos contaram
para a mãe, ela não só não acreditou
como lhes deu uma surra.
“O resultado é que o Júnior passou a
viver mais nas ruas do que em casa e Cíntia foi viver
com uma madrinha. Mais tarde, a mãe e o marido morreram
de Aids, e Juliana, que também contraiu o vírus
com o estupro, ficou com as crianças. Foi quando seu
pai, que poucas vezes aparecia para visitá-la, arrumou
o barraco na São Cosme e São Damião onde
vivem até hoje”, conta Lúcia.
Com infâncias tão marcadas pelo sofrimento,
os irmãos tomaram caminhos difíceis. “Nas
ruas, Júnior se envolveu com drogas e passou a adolescência
pulando de abrigo em abrigo; Juliana antes de engravidar do
João, dormia com o ex-namorado só para garantir
a comida dos irmãos. Apenas Cíntia conseguiu
viver de forma menos traumática, morando com a madrinha.
Ela estuda e sonha em ser médica e os irmãos
a respeitam pelo ar de superioridade que seus desejos de vida
parecem causar. É tudo muito complicado”, conta
Lúcia.
Para colocar ordem na casa, ela faz mais do que apenas colocá-los
no projeto. “Vou à casa deles, converso com cada
um, oriento. Graças a Deus, eles me escutam”,
diz. Lúcia procura conversar sobre tudo; desde alimentação
a planejamento familiar, passando por higiene e horários.
“As crianças ficavam soltas na favela e só
iam dormir às duas da manhã. Falo ainda da importância
de se respeitar e ouvir o outro. Na verdade, eu entro na intimidade
deles, brigo, aconselho e cobro”, diz. Na prática,
Lúcia matriculou todos na escola, pôs em dia
as vacinas e submeteu todos a testes de HIV. Somente o de
Juliana deu positivo.
O fato é que Lúcia e o pessoal do projeto já
anda pensando no futuro. Depois que dona Argentina já
tiver sua casa e os irmãos estiverem mais encaminhados,
será o momento de manter-lhes o apoio, mas direcionar
a ajuda a outros casos. “A família de dona Argentina
e outras tantas poderão contar com o auxílio
de cestas básicas e outras doações. Já
os jovens precisam ter consciência de que podem trabalhar
e depender cada vez menos das doações. Eles
precisam começar a ter sua própria renda e até
ajudar outras pessoas”, fala Lúcia.
Para que isso aconteça Lúcia pretende dar mais
um passo: promover em escolas particulares do bairro campanhas
mensais de arrecadação de alimentos, roupas
e brinquedos para atender famílias sem renda e com
o dinheiro arrecadado nas feiras ou por outras atividades
construir uma creche na comunidade.
A idéia de criar um espaço para os filhos de
moradoras surgiu pela necessidade. “Pude ver que muitas
mães que perdem o marido não conseguem trabalhar
por não ter onde deixar os filhos. A limitação
de idade imposta nas creches também atrapalha. Se tiver
cinco filhos, pode matricular três na creche e ainda
assim não conseguir trabalhar fora porque os outros
dois não foram aceitos por serem um pouco mais velhos.
O resultado é que ou eles ficam sozinhos na comunidade
ou a mãe desiste de procurar emprego”, critica
Lúcia.
Para procurar resolver o impasse, Lúcia quer criar
uma creche diferente. “Todo jovem poderá freqüentar.
Os maiores, quando voltarem da escola, podem ficar lá
e não soltos pela favela. Lá, terão acesso
a livros, brinquedos e atividades. E os pais terão
palestras e orientação. Mas só os filhas
de mães que estejam estudando ou trabalhando, pois
o espaço não pode servir de depósito
de crianças enquanto a mãe fica em casa sem
perspectiva”, fala.
O que quer é apoiar as mulheres que desejam participar
dos projetos já existentes de alfabetização
para adultos ou de qualificação profissional,
mas que precisam tomar conta dos filhos, que criam sozinhas.
“Este lado injusto nem sempre é visto por alguns
projetos”, explica Lúcia.
“Tenho apenas muita boa vontade, por isso quero também
que as pessoas vejam as minhas falhas e criem outras iniciativas
que complementem minhas idéias. Acho que só
assim a ajuda social realmente acontece”, diz. Tudo
o que Lúcia espera é conseguir adesões
solidárias e expandir suas iniciativas por outras comunidades
da região.
ANNA CAROLINA MIGUEL
VILMA HOMERO
do site Viva Favela
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