São 15h na gerência
de divisão da Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana)
da Nova Holanda, no Complexo da Maré (Zona Norte do
Rio). Sob um sol escaldante, no cenário predominantemente
masculino, destaca-se a presença de Maria Lúcia
Alves, 28 anos, que separa com paciência o lixo orgânico
do reciclável. Ao ver centenas de garrafas PET serem
descarregadas, a moça não desanima. Ao contrário,
vibra com a chegada do plástico, que representa sua
renda, sua arte e seu passatempo. Já representou também
o ganha-pão de outros moradores da comunidade, em um
passado não muito distante que ela espera recuperar.
“Tem gente inscrita para trabalhar comigo, mas falta
espaço. Meu sonho é fazer uma linha de mercadorias
com o lixo reciclável, para poder vender, e profissionalizar
outras pessoas que se interessem”, diz ela.
Foi há cerca de oito meses que a vida de Lúcia,
cenógrafa, artista plástica e garçonete,
mudou de contornos. Moradora da Baixa do Sapateiro, no Complexo
da Maré, desde então ela tem lapidado seu talento
para fazer arte com o lixo no atelier que funciona na laje
de sua casa, batizado de Luz e Arte. Hoje a artista passa
seus dias no espaço da Comlurb, onde faz, por conta
própria, a coleta seletiva.
Sua matéria-prima é separada com a ajuda dos
garis e o reconhecimento do gerente de divisão local
da Comlurb, Agnaldo da Silva. "Já trabalhei com
educação ambiental e sei o quanto a coleta seletiva
é importante. Gera emprego e renda. O trabalho dela
tem tudo a ver comigo e por isso acho legal ela vir aqui,
recolher o material, passar essa consciência para outras
pessoas”, diz Agnaldo.
Garimpo na infância
Grande parte do que coleta, Lúcia vende para
cooperativas. As peças que podem virar arte, ela leva
para o atelier. A cenógrafa conta que seu trabalho
de reciclagem ganhou impulso quando foi convidada, em julho,
para ser uma das coordenadoras da coleta seletiva de lixo
durante o evento de moda Fashion Rio, que aconteceu no Museu
de Arte Moderna.
“Desde criança que gosto de fuxicar o lixo,
criar coisas, fazia bijuterias. Na época do Fashion
Rio estava começando a me interessar pelo trabalho
de coleta seletiva. Até então, trabalhava como
cenógrafa em uma firma e começava a montar o
atelier. Foi quando um amigo cenógrafo, que iria trabalhar
no evento, me indicou para trabalhar também, fazendo
a coleta”.
Desde então Lúcia passou a encarar o lixo com
ainda mais carinho. Ela e uma equipe de seis pessoas, todos
moradores do Complexo da Maré, coletaram e separaram
o lixo orgânico do reciclável durante a semana
do evento. Cada container que descarregava, era uma alegria
só. O motivo? O material reciclável seria levado
para a comunidade e depois trocado por cestas básicas.
Segundo Lúcia, não poderia haver melhor recompensa
pelo trabalho. E garante: a idéia foi toda dela.
Carinho na coleta de lixo
“Pedi para levar para a comunidade o material
recolhido, e a organização do evento gostou.
Em um projeto que existe na Mangueira, é possível
trocar 100kg de vidro por uma cesta básica. Como catamos
1652 kg, trocamos por 16, distribuídas entre quem trabalhou
na coleta”, conta.
Ao todo, foram recolhidas cinco toneladas de material reciclável.
“O restante desse material nós vendemos para
uma cooperativa e o valor foi dividido entre a gente. Do lixo
ficaram também muitos carpetes, que distribuí
para os moradores daqui. A Maré toda deve estar acarpetada”,
exagera, abrindo um largo sorriso e usando nos pés
o último lançamento das sandálias havaianas.
“Esse aqui não fui eu que criei, não.
Nós ganhamos dois pares cada um, da coleção
verão 2004, por termos trabalhado no evento”,
diz.
Difícil saber o que não é criação
da artista no Atelier Luz e Arte. Com uma garrafa de vidro
e um escorredor de macarrão encontrados no lixo, Lúcia
fez um simpático abajur. Uma velha moldura de espelho
ganhou cores e passou a emoldurar um quadro cuja pintura é
assinada por ela e um amigo. A estrutura de uma poltrona jogada
às margens de um valão foi decorada com tubos
de PVC e papelão, tudo muito colorido.
Disco vira bolsa
Quando Elymar Santos, Julio Iglesias, Elsa Maria,
Ritchie, Gilberto Gil, Dicró e Djavan poderiam sonhar
em virar bolsas? Pois é. Em suas incursões pela
comunidade em busca de relíquias que iriam parar no
lixo, Lúcia já encontrou discos de vinil desses
cantores e os transformou no acessório feminino. “Fiz
esta bolsa com disco de vinil e continhas de madeira de tapete
de banco de carro”, diz ela, mostrando a peça
ultra fashion. Mas há discos que não ousa transformar
em nada. “Queria poder ouvir, mas não tenho vitrola”,
lastima ela, que conta em seu trabalho com a ajuda de uma
broca de furar vidro e uma máquina de solda.
Na hora de estipular um valor para as mercadorias, ela pensa
um bocado. “A bolsa custa R$ 15, o abajur R$ 20... Está
caro?", pergunta. É que Lúcia ainda não
vende como gostaria. "Até já expus no Largo
da Carioca, no Dia do Meio Ambiente, mas quase não
vendo porque não saio. Quero arrumar um lugar para
vender as coisas que faço...”, deseja.
Há até bem pouco tempo, a artista acumulava
montes de lixo – que ela faz questão de frisar:
“reciclável” – em um terreno em frente
a sua casa, bem próximo a um ponto da Comlurb. Neste
local, ela e mais seis moradores da comunidade faziam a coleta
seletiva. “A gente saía de manhã para
catar lixo pelas ruas e só voltava de noite. As pessoas
já tavam conhecendo a gente, ganhamos até um
carrinho de mão. Dávamos saco plástico,
falavamos para eles separarem lixo orgânico do material
reciclável. Eu era responsável pela venda do
material recolhido e o dinheiro era dividido entre a gente”,
lembra.
Dessa época, a artista guarda apenas boas recordações.
“Um dia estava andando e vi no meio da rua vários
vidros em formato redondo. Eu e Dona Aparecida viemos carregando
até aqui. Eles podem virar uma mesa. Imagina se eu
não tivesse a ajuda dela?”.
Mas o terreno onde armazenavam o material foi ocupado e o
grupo ficou sem espaço para a atividade. Dona Aparecida
Herculano, 57 anos, moradora da Nova Holanda que acompanhava
a artista na coleta, lamenta não poder se beneficiar
mais do trabalho. “Já fiz de tudo um pouco na
vida, não tenho medo de nenhum tipo de trabalho. Cheguei
por aqui procurando serviço e acabei trabalhando com
a Lúcia. Agora estou sem serviço, sem-terra.
Vou voltar a vender salgados”, conta ela, que diz ter
tirado R$ 150 por mês com a venda do material reciclado.
Por enquanto, Lúcia tem trabalhado por conta própria
em outro espaço, provisório, também da
Comlurb. Ela faz muitos planos: “Hoje fico no atelier
de binóculo só vendo o que eles despejam no
terreno lá debaixo. Se for interessante, pego e trago
pra cá”, diz, fazendo graça. Se a prefeitura
oferecesse apoio, espaço e estrutura, Lúcia
construiria uma oficina, com salas de aula para catadores
e recicladores. "Eles poderiam ser alfabetizados e participar
de oficinas de arte. A coleta é importante porque dá
mais vida útil ao aterro sanitário, já
que o material não vai para o lixo”, diz. No
que depender dela, a Maré vai ficar limpinha.
JULIA DUQUE ESTRADA
do site EcoPop
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