Andréia
Brito Ferreira, de 29 anos, trabalha no setor de pesquisa
de passaportes da Polícia Federal, em Brasília.
Ela não pôde concluir a faculdade porque não
possuía meios financeiros para continuar. Nas horas
vagas, Andréia participa de ensaios para, nos fins
de semana, apresentar-se como cantora. Esta poderia ser a
rotina de qualquer jovem de Brasília, mas algo em especial
diferencia Andréia das outras pessoas: ela tem surdez
profunda. Porém, isso não a impede de cantar.
Andréia desenvolveu esta potencialidade graças
ao Surdodum, projeto que se utiliza da batida do coração
para ensinar percussão, música e canto a 30
jovens surdos do Distrito Federal. O trabalho realizado em
Brasília é o único no mundo que usa a
música como meio de inclusão social para surdos.
Em 2003, o projeto foi premiado pela Fundação
Banco do Brasil e passou a integrar o Banco de Tecnologias
Sociais da entidade.
“Antes eu só tocava, agora eu canto e interpreto
as músicas na língua de sinais. Me sinto nas
nuvens quando estou no palco”, conta Andréia,
que começou a perder a audição aos cinco
anos de idade e aos oito já tinha surdez profunda.
A jovem descobriu o Surdodum na escola, no Centro Educacional
Elefante Branco. Lá, ela conheceu a fonoaudióloga
e professora Ana Lúcia Soares, idealizadora e hoje
coordenadora do projeto. Desde criança, convivendo
com uma amiga surda no colégio, Ana Lúcia já
sonhava em realizar um trabalho que promovesse a inclusão
social dos jovens com surdez. Foi em seu primeiro emprego,
no Centro Educacional de Audição e Linguagem
Ludovico Paroni (Ceal), uma escola pública especializada
no ensino para deficientes auditivos, que Ana Lúcia
começou a desenvolver o Surdodum.
Em 1994, a professora, que cantava num grupo de percussão,
recebeu um convite para ensinar seus alunos do Ceal a tocarem
percussão em um show de fim de ano. A apresentação
foi um sucesso. No ano seguinte, Ana Lúcia transformou
a idéia em um projeto e o submeteu à Fundação
Educacional do Distrito Federal. Em 1995, nascia o Surdodum,
que até hoje é desenvolvido no Centro Integrado
de Ensino Especial (CIEE) da Secretaria de Educação
do Distrito Federal, na Asa Sul. O nome do projeto foi idéia
de Clésio Alves, um dos alunos da fonoaudióloga.
Seu objetivo era misturar a palavra surdez com o nome do mais
importante conjunto de percussão brasileiro, o baiano
Olodum.
A surdez se divide em quatro graus: leve, moderada, severa
e profunda (surdez total). Segundo dados da Organização
Mundial de Saúde (OMS), a deficiência auditiva,
em seus diversos graus, afeta 10% da população
mundial. Nos países desenvolvidos, um em cada mil habitantes
é surdo. Nos países em desenvolvimento, o número
cresce para quatro em cada cem, conseqüência da
falta de políticas primárias de prevenção
dos problemas auditivos. Segundo pesquisa do IBGE, no Brasil
existem 24,5 milhões de pessoas portadoras de deficiência
de qualquer tipo. Desse total, 16,7% apresentam deficiência
auditiva, mais de quatro milhões de pessoas.
Apresentações
O grupo Surdodum já participou de programas
de TV e hoje faz shows por todo o Brasil. São três
formações. A principal é a Banda Show,
responsável pelas apresentações. Ela
é formada por oito surdos e cinco ouvintes, aqueles
que ouvem segundo os surdos. Ana Lúcia, coordenadora
do projeto, também canta nas apresentações,
ao lado de Andréia e de Luciana Delforge. Outros quatro
músicos, voluntários, compõem a Banda
Show: Alexandre Macarrão (baixista), Augusto Sousa
(tecladista), Arnaldo Barros (guitarrista e compositor) e
o maestro Reinaldo Braz.
Duas formações intermediárias, compostas
por cinco surdos cada, estão sendo treinadas para futuras
apresentações. Eventualmente, os músicos
da banda principal fazem apresentações com estes
dois grupos. Os ensaios ocorrem duas vezes por semana. Em
caso de proximidade dos shows, o grupo chega a se reunir para
ensaiar nos fins de semana. Além de composições
próprias, a banda toca sucessos de cantores e grupos
da MPB como Djavan, Gilberto Gil, Paralamas do Sucesso, Milton
Nascimento e Chico Buarque.
Ana Lúcia desenvolve a sensação de ritmo
em seus alunos usando as batidas do coração,
dos pés, das mãos, a respiração,
o relógio, além de informações
visuais e concretas. Uma outra técnica de percepção
do ritmo se dá por meio da pulsação vibratória
da música, principalmente de seus tons mais graves.
É mais ou menos o que acontece com qualquer pessoa
que ouve uma música bem alta e sente a vibração
do som no próprio corpo. No caso do trabalho de vocalização,
Ana Lúcia interpreta as músicas para Andréia
e para Luciana. As técnicas ajudam os alunos a desenvolverem
mais rapidamente a capacidade de falar. Ana Lúcia fica
espantada com a rapidez de aprendizagem destes jovens.
“O envolvimento e a concentração deles
é tanta que em uma semana eles aprendem a tocar percussão.
Uma outra pessoa levaria um mês”, compara a professora.
Melhorando a fala e conseqüentemente sua capacidade de
comunicação, os alunos do Surdodum melhoram
também sua auto-estima. Mas este não é
o único bem do trabalho desenvolvido em Brasília.
“O Surdodum mexe com o senso de responsabilidade. A
maioria dos alunos que entra no projeto apresenta uma ascensão
global, chegando até a cursar uma faculdade”,
conta a professora, orgulhosa.
O trabalho de Ana Lúcia estará em breve à
disposição de qualquer pessoa. As músicas
tocadas pela banda do Surdodum estão sendo reunidas
no primeiro CD do grupo. Em fevereiro, ele será lançado
em Brasília. O disco é uma produção
independente e reunirá dez músicas de composição
própria. Para gravar o CD, o Surdodum teve o apoio
da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, do técnico
Pauly de Castro e da R&B Mastering Estúdios.
Além do CD, Ana Lúcia fala com emoção
de seu novo projeto, o Surdodunzinho, voltado para crianças
de 4 a 12 anos. Atualmente, ela tem cinco aluninhos. Em breve,
a professora pretende montar uma banda com as crianças.
“Quando as crianças vêem os instrumentos,
eu tenho que deixá-las brincarem por pelo menos uns
15 minutos. Se eu não fizer isso, elas passam a aula
inteira perturbando”, brinca a professora.
O próximo sonho de Ana Lúcia é transformar
o Projeto Surdodum em Instituto, o que daria aos alunos um
espaço próprio para os ensaios. Nada mais justo
para coroar um trabalho tão bem executado e que tem
rendido frutos, o que fica provado em cada apresentação
da Banda Show. Mesmo sem poder ouvir os aplausos, os percursionistas
especiais têm consciência da qualidade de seu
trabalho.
“Nosso objetivo não é exacerbar a deficiência.
Fazemos apresentações e as pessoas nem percebem
que a banda é composta por surdos. Somos reconhecidos
pela qualidade do nosso som. Isto sim é inclusão
social”, comemora Ana Lúcia.
DANIELLE CHEVRAND
da Fundação Banco do Brasil
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