"Como
se faz para ser professor universitário?", pergunta
A.L.F.S., 17, interno da Febem. Carlos Roberto do Prado, 51,
professor universitário e voluntário na instituição,
afirma que é preciso muito trabalho e estudo. Depois
de contar que já foi até bóia-fria, Prado
percebe que o jovem está emocionado e pergunta se ele
sonha com a profissão de professor. A resposta surpreende.
"É porque eu matei um", justifica o interno.
Para muitos, a resposta pode ser apenas a confissão
de um crime ou até uma provocação. Para
Prado, porém, é o começo da recuperação
do jovem. Ao tentar saber sobre a vítima, o interno
começou a assimilar a gravidade do crime cometido,
segundo o professor.
"A emoção era porque ele estava finalmente
percebendo o que fez", diz Prado, líder de um
grupo de voluntários que trabalha com internos da unidade
19 da Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar
do Menor), no complexo Tatuapé, na zona leste de São
Paulo. "Se o interno não perceber realmente o
que fez, sua permanência na Febem vai ser inútil."
O interno falava a verdade. Ele era reincidente. Foi preso
pela primeira vez por latrocínio (roubo com a morte
da vítima) e estava internado de novo, por roubo. A
confissão foi feita em forma de desabafo a Prado.
Administrador de empresas, com mestrado direcionado para
o terceiro setor (que abrange as organizações
não-governamentais) e professor da Faculdade de Filosofia,
Letras e Educação da Universidade Mackenzie,
ele organizou, no ano passado, um grupo de seis pessoas -formado
por profissionais e estudantes na área de psicologia-
para prestar atendimento a internos e também a funcionários
da Febem. Integram a equipe a mulher de Prado, que é
psicóloga, e a filha.
Medo e desconfiança
De setembro a dezembro do ano passado, o grupo conversou com
internos em cadeiras colocadas no pátio da unidade.
As conversas eram em grupo e individuais. Dos 102 internos
da unidade, na maioria com perfil primário grave, 74
quiseram participar da experiência.
Com os funcionários, foram feitas dinâmicas
de grupo e conversas coletivas. Participaram do porteiro ao
diretor. A segunda fase do projeto começou ontem. O
grupo de seis voluntários já cresceu para 14.
A primeira etapa foi suficiente para encontrar algumas semelhanças
entre internos e funcionários. Entre elas, medo e desconfiança
em relação ao outro.
Segundo Prado, o interno chega à instituição
com medo de tudo, vê o servidor como um inimigo em potencial
e não tem noção clara do crime que cometeu.
"O interno sabe que fez algo errado, mas não percebe
profundamente o mal que causou", diz.
O funcionário, por outro lado, também tem medo.
Teme se tornar refém em rebeliões ou ser agredido.
Muitos vêem o interno apenas como um prisioneiro que
deve ser mantido encarcerado.
Resistência
Encampado pela direção da unidade, o trabalho
do grupo enfrentou resistências de ambos os lados. Internos
e funcionários desconfiaram que aquilo poderia ser
usado contra eles.
O primeiro passo para ganhar a confiança foi o sigilo
das informações. Nada do que é conversado
com o interno vai para o relatório -documento feito
por técnicos da Febem que informa à Justiça
as condições do interno e pede ou não
a sua desinternação. Não se comenta o
que o interno falou do funcionário e vice-versa.
"Isso seria quebra de confiança. Seria antiético.
E essas informações podem acabar sendo usadas
pelas duas partes", diz o professor, que faz questão
de dizer a internos e funcionários que o atendimento
não é institucional.
"O interno vê o relatório como uma forma
de premiação ou punição. Mas ele
precisa falar sobre seus problemas sem pensar nisso",
diz o professor. E, segundo ele, não é só
o menor que se sente abandonado. "O funcionário
também se sente um pouco abandonado em relação
ao reconhecimento de seu trabalho."
As conversas com o grupo parecem ter ajudado o interno A.L.F.S.
a voltar para a rua. Ele, que completou 18 anos no mês
passado, foi desinternado em novembro de 2003. Segundo informações
da direção da unidade, o jovem já está
estudando e trabalhando.
As informações são
da Folha de S. Paulo.
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