O Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres, lançado
em dezembro do ano passado, coloca a discussão sobre
a descriminalização do aborto como ponto prioritário.
O documento prevê que em 2005 seja elaborada uma proposta
de revisão da legislação que pune as
mulheres em casos de interrupção voluntária
da gravidez.
A discussão pode resultar em alteração
do Código Penal que data de 1940 e prevê pena
de prisão para mulheres e profissionais de saúde
que praticarem aborto. As exceções são
para gravidez decorrente de estupro ou em casos em que a vida
da gestante está em risco. Projeções
de pesquisadores atestam que o número de casos de abortos
clandestinos ultrapassa 1 milhão por ano no país.
A estimativa supera os dados oficiais porque estima-se que
somente mulheres com complicações pós-aborto
recorrem aos hospitais.
Desde que o governo anunciou a intenção de
discutir o tema, representantes da sociedade, como segmentos
da Igreja Católica e até mesmo o procurador-geral
da República, Claudio Fonteles, já se manifestaram
contra.
Nesta semana será definida qual a entidade religiosa
irá acompanhar a discussão. A Secretaria de
Políticas para as Mulheres propôs o Conic (Conselho
Nacional de Igrejas Cristãs) que reúne igrejas
católicas, cristãs e evangélicas. A CNBB
(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) reclamou
ao presidente Lula por ter se sentido excluída do debate.
Médica sanitarista e ex-reitora da UERJ (Universidade
do Estado do Rio de Janeiro), a ministra Nilcéa Freire,
da Secretaria de Políticas para as Mulheres, afirma
que todos serão ouvidos, mas que o Estado brasileiro
é laico. Depois de participar de um evento em Nova
York onde se avaliou os dez anos da Conferência Mundial
sobre a Mulher, Freire diz que as mulheres têm muito
a comemorar no Dia Internacional da Mulher. "A nossa
comemoração tem que ser com muito trabalho",
disse.
Em entrevista à Folha Online, a ministra explicou como
funcionará o grupo de discussão, quais as entidades
que participarão do debate e os impactos que a possível
descriminalização do aborto poderão ter
na sociedade e nas relações do PT com a Igreja.
Veja os principais pontos da entrevista:
Folha Online - O grupo de discussão estava
previsto para começar o debate em janeiro. Por que
o atraso?
Freire - A conclusão do grupo só poderia ser
feita depois do retorno dos congressistas porque a terceira
parte desta comissão é a representação
do Congresso. Eles só retornaram no dia 15 de fevereiro.
Com a questão da eleição [na Câmara]
de novos líderes e a redefinição das
comissões, isso trouxe algum atraso, mas até
o fim do mês o grupo vai ser instalado.
Folha Online - Quais são as entidades civis
que vão participar da discussão?
Freire - Temos quatro entidades do Conselho Nacional de Direitos
da Mulher: o Fórum de Mulheres do Mercosul, a Secretaria
Nacional de Mulheres da CUT, a Articulação de
Mulheres Brasileiras e a Rede Feminista de Saúde. Vamos
ter também uma entidade médica, a Febrasgo (Federação
Brasileira de Gineco-Obstetrícia). Além disso
teremos uma entidade religiosa. A secretaria apresentou uma
proposta para que fosse indicado o Conic. Algumas conselheiras
não concordaram e colocamos a questão em votação.
Nesta semana a gente decide se é o Conic ou alguma
outra entidade.
Folha Online - A CNBB, que já se manifestou
contra a descriminalização do aborto, reclamou
ao presidente Lula por ter se sentido excluída do debate.
Por que ela foi impedida de participar?
Freire - A CNBB não foi excluída porque a comissão
vai funcionar em regime de audiências públicas.
Todos os segmentos da sociedade serão ouvidos ou por
vontade de serem ouvidos ou por convocação ou
convite. A CNBB certamente será um dos segmentos da
sociedade a serem ouvidos. A secretaria propôs a inclusão
no conselho do Conic por se tratar de uma entidade que abriga
outras igrejas cristãs também. Estaríamos
proporcionando um lugar nessa discussão a uma entidade
que representaria várias igrejas, inclusive a
Igreja Católica. Fui conversar com a CNBB. A igreja
tem a sua opinião, que deve ser respeitada pelos seus
fiéis.
Folha Online - A história do PT está
muito relacionada à da Igreja Católica, desde
as comunidades eclesiais de base até a Comissão
Pastoral da Terra, sem falar na Teologia da Libertação.
A divergência numa discussão tão importante
não pode comprometer a relação do PT
com a Igreja em decisões futuras?
Freire - Machado de Assis dizia uma frase que eu não
vou me lembrar dela exatamente como é, mas que diz
mais ou menos o seguinte: nós não precisamos
cantar a mesma música para dançar a mesma quadrilha.
Nós não precisamos concordar em tudo para estarmos
juntos. Divergir sobre um ponto, divergir sobre uma questão
é normal na vida democrática. Uma coisa são
os militantes do PT, o Partido dos Trabalhadores, os bispos
do CNBB, outra coisa são os fiéis. O que é
fundamental é que, enquanto governo, temos entendimento
que o Estado é laico, isso está na Constituição
e a laicidade do Estado tem que estar presente nas nossas
atitudes também.
Folha Online - O país vive hoje uma grave
crise na saúde. O Estado está preparado para
lidar com as conseqüências de uma descriminalização
do aborto em termos de tratamento ambulatorial, caso haja
uma explosão de números de abortos?
Freire - Na quase totalidade dos países onde houve
um processo de não criminalizar mais as mulheres pelo
aborto, o número de abortos caiu dramaticamente. Junto
com a não criminalização foram implementadas
políticas preventivas. É o que nós estamos
fazendo, estamos abrindo essa discussão, que não
é para hoje nem para amanhã. Estamos implementando
uma política nacional de planejamento familiar onde
nosso objetivo é tornar acessíveis todos os
métodos contraceptivos modernos e também as
informações sobre eles, de maneira que a população
possa se prevenir.
Aborto não é um método anticoncepcional.
Aborto é um incidente na vida de uma mulher. Nenhuma
mulher faz um aborto alegre, é sempre um momento muito
traumático na vida de uma mulher. Ao contrário
de apoiarmos o aborto, nós somos contra o aborto. Por
isso queremos que as mulheres possam ser bem atendidas e que
não sejam vítimas da ilegalidade, da clandestinidade,
e que quando forem tenham todo o direito de serem atendidas
nos hospitais. É isso que diz a norma técnica
do Ministério da Saúde, que nós todos
apoiamos, os métodos anticoncepcionais estão
sendo comprados. Inclusive a contracepção de
emergência estará disponível no serviço
público de saúde.
Folha Online - Os cortes no Orçamento não
poderiam comprometer algumas destas políticas?
Freire - Eu não tenho um "pânico orçamentário".
A gente trabalha dia-a-dia fazendo a avaliação
que tem que ser feita. É assim que os bons gestores
trabalham, avaliando dia-a-dia as possibilidades de sua ação.
Folha Online - Este é o primeiro governo a
instituir uma secretaria para tratar de políticas específicas
para as mulheres. O que já foi alcançado nestes
dois anos e qual será o foco da secretaria este ano?
Freire - A elaboração do Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres é a que vai deixar
mais lastro no futuro por ter contado com a participação
de 17 ministérios e secretarias especiais. Ele materializa
a reivindicação de transformar em realidade
a perspectiva de igualdade entre homens e mulheres nas políticas
públicas do país.
Para este ano, espero que seja aprovado no primeiro semestre
o projeto de lei que encaminhamos em novembro do ano passado
ao Congresso Nacional para coibir a violência doméstica
contra a mulher. Nós temos ainda instrumentos jurídicos
absolutamente frágeis, insuficientes para dar conta
desse tipo de violência.
A idéia é que tenhamos instrumentos legais
para que não aconteça o que nós vemos
acontecer todos os dias. Entre a denúncia de uma ameaça
e o tempo necessário para que se tome alguma providência,
pelos tramites atuais, uma mulher morre.
JANAINA LAGE
da Folha Online
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