Júlia*
tinha oito anos quando, por acaso, ouviu uma conversa no quarto
do pai e da madrasta e ficou sabendo que era portadora do
HIV. Apesar de, desde os seis anos, quando a mãe faleceu,
ela tomar diversos medicamentos por dia, a garota não
sabia que os remédios eram para combater o vírus.
A doença era - e até hoje é - praticamente
um segredo da família. Nem a empregada - que mora na
mesma casa -, nem uma prima - que vive com a família
- sabem. Na realidade, Carlos* (o pai), Priscila* (a madrasta)
e Júlia vivem como se a doença não existisse
em suas vidas. "Pra mim, isso não existe. Só
lembro que tenho isso quando tenho que ir ao médico
ou fazer um exame. Se eu pensar nisso 24 horas, fico pirada",
afirma Priscila, também contaminada.
De acordo com Elizabete Franco Cruz, psicóloga e
ativista do GIV/GEISO/SE/Unicamp, fingir que o vírus
não existe é uma postura bastante comum entre
pessoas soropositivas. Embora considere uma situação
delicada, ela diz que "fingir que a doença não
existe gera um preconceito ainda maior. Se não se fala
nesse assunto é porque ele deve ser muito ruim... Além
do que, se isso 'não existe', como viver e entender
a doença como algo que faz parte da própria
vida?", questiona.
Para Elizabete, os pais devem falar sobre a doença
para seus filhos desde cedo. "Não contar é
como cometer uma violência com a criança. Se
você tem um segredo e ninguém te conta, quando
você o descobre é ainda pior porque parece que
não te contaram porque era muito grave", justifica.
Ela afirma que isso pode ter uma série de implicações
na auto-estima e no tratamento do paciente.
Medo e sexualidade
Assim que Júlia descobriu que estava infectada,
sentiu medo. Foi imediatamente conversar com a madrasta, que
contou que ela provavelmente contraíra o vírus
ainda bebê, através da mãe, que deve ter
sido infectada pelo pai. Aos poucos, ela foi entendendo e
o medo passou. Hoje, a menina tem 14 anos. É uma adolescente
típica, bastante tímida, mas que gosta de curtir
a vida. Ainda não tem namorado, não quer "ficar"
com ninguém, mas diz que quando isso acontecer, vai
ser "natural". Diz que não pensou ainda muito
sobre sua sexualidade. Seu sonho é ser pediatra e por
isso diz que está se dedicando aos estudos. Na escola,
os amigos não sabem de seu "segredo". Júlia
diz que não imagina como os colegas reagiriam se soubessem.
Mas como tem medo, prefere não se arriscar a contar.
A sexualidade certamente é um tema difícil
para qualquer adolescente. No caso do jovem portador do HIV,
em algum momento ele vai ter que enfrentar o conflito de dizer
ou não a seu parceiro que ele é soropositivo.
Elizabete faz questão de ressaltar que todo portador
de HIV tem o direito à sexualidade, porque "antes
de ser soropositivo, ele é uma pessoa". O que
ele precisa é aprender como fazer sexo seguro, como
usar o preservativo. Para ela, isso deve ser trabalhado de
forma aberta, a partir do diálogo.
Elizabete também afirma que o adolescente tem o direito
de contar ou não sobre sua doença, para quem
quer que seja. Para ela, não existem regras sobre o
que é melhor fazer e em qual momento. Trata-se de uma
decisão pessoal. No entanto, acredita que um profissional
bem preparado pode acompanhar o adolescente nos momentos de
dúvida. "O profissional deve saber qual o significado
que a criança dá para a infecção
e porque existe o preconceito. Contar ou não depende
do caso", afirma. Para ela, o que não pode acontecer
é os pais tomarem as decisões pelos filhos;
ou avaliarem quê postura os filhos devem ter nessas
situações.
Preconceito e mídia
O medo do preconceito parece bastante presente na
família de Júlia. Talvez esconder a doença
seja a forma de proteção que eles encontraram
contra a discriminação. Quando soube que estava
infectada, Priscila trabalhava como babá. Resolveu
contar para os patrões que estava doente e, imediatamente,
foi despedida. Depois disso, não conseguiu mais trabalhar
fora de casa.
A mulher diz que existe "preconceito demais" em
relação ao HIV/AIDS, mesmo hoje. "As pessoas
têm medo de encostar em você, de falar com você
quando sabem que você tem isso. Se você tem qualquer
doença, câncer, diabetes e vive tomando remédio,
tudo bem. Mas se tem isso, te olham de outro jeito".
Por isso ela evita falar sobre a doença; considera
que o assunto deve se mantido na intimidade. "Eu levo
a vida como uma pessoa normal. Afinal, sou normal!",
reivindica.
Priscila não se diz satisfeita com as campanhas de
mídia. Na opinião dela, a forma como a mídia
aborda a questão da AIDS também ajuda a criar
o preconceito. Ela lembra que na época em que não
sabia que estava infectada e via as campanhas na televisão,
achava que aquilo nunca ia acontecer com ela. "Eu não
me identificava". Hoje, ela considera que a AIDS continua
sendo mostrada de forma errada. "A mensagem que eles
passam é que se você tem a doença, vai
morrer. As campanhas são muito tristes".
E manda outro recado: diz que a campanha da amamentação,
recentemente divulgada na televisão, mostrava sobre
a importância de amamentar o filho até pelo menos
os seis meses, mas não citava nada sobre mulheres que
não podem amamentar suas crianças. As mulheres
soropositivas não podem dar de mamar porque podem infectar
seus filhos através do leite. Felizmente, Priscila
foi bem orientada quando teve a primeira filha "de sangue",
hoje com 3 anos, e não a amamentou. A menina não
foi infectada com o HIV.
Júlia também acha que as campanhas deveriam
ser feitas com mais cuidado. Ela considera que é preciso
divulgar mais informações sobre a doença,
mas que isso precisa ser feito de outra forma. Só não
sabe explicar como...
Segundo plano
De acordo com dados do Ministério da Saúde,
desde 1980 e até dezembro de 2003, foram registradas
10.577 crianças (0 a 12 anos) infectadas pelo HIV no
Brasil. Um número pequeno quando comparado ao total
(310.310), mas que não deve ser desprezado. Os adolescentes
e jovens portadores do HIV, que têm entre 13 e 19 anos,
são 6.566.
Segundo José Araújo Lima Filho, coordenador
geral da Associação François Xavier Bagnoud
do Brasil (AFXB), uma casa de apoio para crianças portadoras
de HIV/AIDS, diz que os direitos das crianças no Brasil
não estão sendo respeitados. "A presença
de crianças pedindo dinheiro no farol é uma
agressão, assim como a qualidade do ensino público
atual. Esse efeito dominó atinge mais fortemente às
crianças soropositivas. Mas isso não pode ser
desvinculado da temática geral dos direitos da criança
e do adolescente, que ainda não são respeitados
em nosso país", adverte.
Uma das questões que vem sendo bastante discutida
em relação às crianças portadoras
de HIV/AIDS é sobre a institucionalização.
Elizabete Franco Cruz (que também faz parte do Grupo
de Trabalho do Fórum DST/AIDS que discute Criança
e Adolescente desde 2001) diz que as casas de apoio surgiram
no início da epidemia, para ocuparem o lugar da família
de muitas crianças que estavam ficando órfãs.
Hoje, no entanto, as organizações da sociedade
civil defendem que a criança permaneça em uma
família e que a institucionalização só
se dê em último caso.
"No passado, as crianças iam para as casas de
apoio porque se acreditava que elas não viveriam muito
tempo. Hoje, a epidemia está em outro momento, um momento
que é de vida e não de morte. A questão
agora é: qual vida oferecer para a pessoa que vive
com o HIV?", afirma Elizabete.
José Araújo considera que a criança
portadora de HIV também tem direito à família,
como está previsto no Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA). E que uma instituição
de apoio, por melhor que seja, nunca funciona como uma família,
em que as regras não são impostas, mas construídas
em conjunto. "A família nunca é regida
por um Estatuto. Por mais que exista carinho, afeto, atenção
em uma instituição, isso não é
nunca igual ao que acontece em uma família", diz.
Ele ainda afirma que a criança portadora de HIV/AIDS
não deveria ser encaminhada para casas de apoio que
só recebem pessoas nessa situação. "Quando
as crianças são encaminhadas para uma casa de
apoio especial, isso cria uma forma de segregação;
gera um rótulo que propicia o preconceito". Na
opinião de José Araújo, é preciso
trabalhar mais com os abrigos de forma geral, a fim de que
eles entendam a questão da AIDS. "Essas crianças
não cometeram nenhum tipo de infração
para estarem segregadas da sociedade", completa.
Pensando com o "bolso"
Outro ponto que também precisa ser aperfeiçoado
em relação às crianças portadoras
de HIV/AIDS é a questão dos remédios.
José Araújo diz que não existem medicamentos
adequados para o tratamento das crianças no Brasil.
Os meninos e meninas devem tomar os mesmos remédios
que são fabricados para os adultos.
Embora o acesso universal aos medicamentos tenha avançado
muito no país, a qualidade dos remédios, sobretudo
os voltados para a criança, ainda está longe
de ser a ideal, segundo José Araújo. Ele explica
que os medicamentos geram lipodisdrofia (migração
de gordura de uma parte do corpo para outras), provocando
alterações físicas tanto no adulto, quanto
na criança.
José Araújo conta que, por um lado, a criança
vive bem. Por outro, o medicamento cria um problema estético.
Assim, algumas crianças e adolescentes não têm
coragem de se olhar no espelho. Outras, não querem
mais ir à escola, principalmente quando chegam à
adolescência.
O coordenador da AFXB afirma que não se desenvolvem
pesquisas sobre medicamentos voltados para crianças
porque o gasto com esse tipo de pesquisa não compensa
para os laboratórios (o número de crianças
infectadas é baixo em relação ao de adultos).
"Como no caso do desenvolvimento de pesquisas sobre medicamentos
só se pensa com o bolso e não com a ética
e com o respeito, as crianças são deixadas de
lado. E são obrigadas a tomar os mesmos medicamentos
dos adultos. O gosto dos xaropes é muito ruim e isso
dificulta o tratamento", diz.
Júlia confirma. Até o mês passado, ela
tomava muitos remédios, que eram muito fortes. "Eu
tinha que tomar o medicamento junto com leite condensado,
por exemplo, porque o gosto era muito ruim", lembra.
Hoje, ela toma dois comprimidos e se sente bem melhor.
De acordo com a psicóloga Elizabete Franco Cruz,
a questão dos remédios para as crianças
reflete um problema ainda maior no Brasil que é qual
o lugar que a infância ocupa no país. E nesse
sentido, qual o lugar da AIDS na infância. Ela afirma
que o Grupo de Incentivo à Vida (GIV), de ajuda mútua
para pacientes soropositivos, criou diversas publicações
voltadas para crianças e adolescentes, discutindo a
adesão aos medicamentos, sexualidade, entre outros.
Algumas publicações estão disponíveis
para download no site da organização.
*os nomes foram trocados para preservar a identidade dos
entrevistados.
LAURA GIANNECCHINI
do site Setor3
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