O
aposentado Severino Felix Custódio da Silva, de 62
anos, vive cercado de problemas. Basta chover que as preocupações
aumentam. A água invade seu barraco, construído,
como tantos outros, ao lado do conjunto habitacional Nelson
Mandela, no complexo de Manguinhos (Zona Norte do Rio). Como
ele, várias outras famílias que moram nas palafitas
sobre a junção das águas dos rios Jacaré
e Faria Timbó, entre a refinaria de Manguinhos e a
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pertinho da
Avenida Brasil, convivem com a precariedade de suas casas,
a pobreza e o risco iminente de doenças.
Os problemas por ali são muitos.
A começar pela falta de estrutura das moradias, erguidas
com tábuas de madeira, mais ou menos de acordo com
as posses e o talento de construtor do proprietário.
Sem rede de saneamento, os canos que saem das casas despejam
o esgoto diretamente na água dos rios. O cheiro dos
gases emanados da refinaria de Manguinhos está sempre
presente e costuma provocar mal-estar nas crianças
e nos que ainda não se acostumaram a ele.
“Quando tem temporal, a maré
enche, e é preciso colocar os móveis uns por
cima dos outros porque a água sobe mais de um metro.
É comum isso acontecer”, queixa-se Severino.
Há cerca de sete anos, sem dinheiro para continuar
pagando aluguel, quando se aposentou, ele viu sua renda diminuir.
A necessidade fez com que construísse sua casa sobre
palafitas ali no Mandela e se mudasse. Foi um dos primeiros
moradores daquela área e vive sozinho num cômodo
de aproximadamente 9m2. Hoje, tudo o que ele quer é
voltar para sua terra, no Rio Grande do Norte. Enquanto essa
possibilidade de mudança não chega, ele vai
ficando.
"Não saio daqui porque
já me acostumei. Vim de Belford Roxo para cá
porque meu filho morreu e não consegui receber a pensão
dele", explica Dilsa Souza Santos, separada, de 68 anos,
que também vive sozinha num barraco sobre as palafitas.
Sua única renda são os R$ 50 que a filha que
é empregada doméstica lhe manda todo mês
e o dinheiro das latinhas que cata e que lhe rende de R$ 5
a R$ 10 por semana. "Com o que ganho compro uma carne,
um pãozinho e outras coisinhas para dentro de casa",
afirma.
Para ela, o que mais incomoda não
são as enchentes. “Aqui quando chove muito, enche
tudo. Mas invasão de rato é toda hora, com chuva
ou não. A gente até já se acostumou com
rato dormindo com a gente”, diz. Assim como Severino,
também foi a própria Dilsa que, há quatro
anos, ergueu, tábua por tábua, a casa onde mora.
“Ia catando pedaços de madeira e construindo
cada pedacinho do barraco. Os vizinhos me ajudaram. Foi a
mesma coisa com a minha vizinha, que morou um tempo comigo
até conseguir fazer o barraquinho dela aqui ao lado.
Nós aqui somos muito unidos”, conta.
Faria Timbó
Na sala de Dilsa, de mais ou menos 3m x 3m, há
pouquíssimos móveis, entre os quais um velho
aparelho de televisão. Em dias de chuva, o teto, também
de madeira, tem diversas goteiras, que o plástico com
que ela tentou cobrir não resolveu. A janela dá
direto para o rio Faria Timbó e a refinaria. "Nunca
cheguei a passar mal, porque me acostumei ao mau cheiro. Mas
uma vizinha outro dia foi parar no postinho, com problemas
respiratórios", diz, referindo-se ao posto de
saúde na Fiocruz, que atende aos moradores da comunidade.
Dificuldades que Ednildo Cândido
da Silva, de 32 anos, conhece bem. Presidente da Associação
de Moradores e Amigos do Conjunto Habitacional Nelson Mandela
(AMAHNEM) há cerca de dois anos, depois de ocupar a
vice-presidência desde 1998, Ednildo vem tentando encontrar
saída para a questão do saneamento local, que
considera uma das prioridades.
“Enviei vários pedidos
à prefeitura para a ampliação da rede
de esgotos, mas nada foi feito”, reclama. A explicação
é que, com a inauguração das 800 casas
populares do conjunto habitacional Nelson Mandela, para abrigar
famílias removidas de outras comunidades do Complexo
de Manguinhos, como Arará, Varginha, Jacaré,
Manguinhos e João Goullart, há 14 anos, a área
foi urbanizada. Mas alguns anos mais tarde, começaram
a surgir novas moradias que foram se estendendo até
a beira do rio.
“Muitas dessas novas casas,
construídas ainda sobre a área aterrada, cobriram
as saídas dos bueiros. Com isso, toda a rede de esgoto
ficou prejudicada”, fala Ednildo. Motivo para que ele
agora lute para evitar novas construções sobre
as saídas de esgoto. Mas as freqüentes enchentes
que invadem as casas têm ainda outro motivo.
Ligações clandestinas
“Como não há infra-estrutura,
para ter água encanada, os moradores das palafitas
foram fazendo ligações clandestinas na tubulação
que serve ao conjunto Nelson Mandela. E a rede de esgoto,
que foi construída para atender os 2.500 moradores
do conjunto, hoje precisa atender uma população
de cerca de sete mil pessoas. Ou seja, não há
esgoto que resista a tamanho aumento da população",
diz o líder comunitário.
Ele chega a esse número, que
engloba tanto o pessoal das casas quanto o das palafitas,
pelo cadastramento dos moradores na associação.
“Não há como precisar quantas pessoas
moram nas palafitas. Todo dia estão construindo novas
casas. Já tentamos fazer um levantamento, mas não
temos estrutura para isso”, afirma Ednildo. O fato é
que o crescimento desordenado da comunidade – que nos
últimos sete anos foi tomando a beira dos rios –
terminou agravando as condições de vida locais.
"O conjunto habitacional Nelson
Mandela foi entregue há relativamente pouco tempo e,
por isso, na prefeitura toda essa área consta como
tendo saneamento básico, tudo organizado. Isso nos
deixou fora do projeto Favela-Bairro, que, nos governos Cesar
Maia e Luiz Paulo Conde (atual e ex-prefeito do Rio, respectivamente),
chegaram à Nova Holanda, Vila do João e Baixa
do Sapateiro. Esses projetos sociais do governo não
vieram para a comunidade", lamenta Ednildo, que também
morou numa palafita até mudar-se para uma das casas
populares do Mandela.
Latas e Garrafas do lixo
Por tanto problema, Batista Quintino de Andrade,
de 37 anos, não vê a hora de se mudar para a
casa de alvenaria que está construindo numa área
aterrada, próximo ao rio Faria Timbó. O terreno
foi conseguido com a remoção das palafitas que
ocupavam a beira do rio Jacaré e onde ele tinha erguido
o chiqueiro, no qual mantinha os mais de 20 porcos que cria.
Para bancar a construção
e sustentar mulher e filha, Batista, a quem todos conhecem
como Morreu, trabalha como tratorista na Cooperativa dos Trabalhadores
de Manguinhos, na Fundação Oswaldo Cruz. “A
cooperativa emprega moradores locais”, explica. Para
complementar o orçamento, Morreu não só
cria porcos como cata latinhas, garrafas pet e o que mais
encontrar de material reciclável com o pequeno trator
com que percorre toda a região.
Criação de porcos
"Comecei a criar porco depois que vi um quase
se afogando aqui no Canal do Cunha. Salvei o porco, que virou
o primeiro de minha criação. Depois comprei
outros para acasalar. Isto tem muito tempo. Hoje crio meus
porcos com restos de comida de restaurante e pode ver que
nem cheira mal. Mato aqui mesmo e vendo pro pessoal",
conta.
Com a venda da carne na própria
comunidade, ele tira, em média, mais um salário
mínimo. Já o material que recolhe é trocado
na Vila Olímpica da Mangueira por uma cesta básica.
"O canal é bonzinho sempre traz garrafas pet pra
mim”, diz. Num terreno próximo ao chiqueiro,
ele guarda tudo o que recolhe para reciclagem. Só não
junta papelão, com medo de cupim.
Morreu sabe que mesmo na casa nova
continuará vivendo o problema das águas invadindo
as casas – como também acontece com parte das
moradias construídas no conjunto Nelson Mandela. "Se
der uma tempestade, aqui atrás fica tudo alagado. Inclusive
o canal aqui do lado. O que também faz entupir é
o pessoal jogar garrafas de plástico nos bueiros. Como
já não há muitos, o esgoto fica sem ter
para onde correr e acaba estourando na rua", explica.
Se não bastasse o esgoto da
própria comunidade, há também a sujeira
do Canal do Cunha que se junta aos resíduos que descem
da refinaria de Manguinhos. "Nós mesmos é
que temos que nos virar. A gente vai pedindo ajuda a um e
a outro para solucionar os problemas. Freqüentemente,
temos que fazer mutirão para consertar um cano de esgoto
estourado. É o trabalho diário da associação
de moradores. Vivomandando pedidos a Cedae (Companhia Estadual
de Água e Esgoto). Até que a gente cansa e mete
mãos à obra ", fala Ednildo.
Até o espaço de lazer
na comunidade é difícil de ser aproveitado.
Ao lado do rio Jacaré, há um campo de futebol.
“Mas jogar ali é um sufoco; o campo é
pequeno e a bola vive caindo no rio. Para pegar tem que entrar
na água, que é imunda", diz Jorge Barcelos
Soares, de 40 anos, que tem uma pequena birosca, em Mandela
1, ao lado das palafitas. Desse jeito, quando quer se divertir,
ele pega a família e vai para a vizinha favela do Arará.
"A realidade é que nós vivemos totalmente
abandonados", resume.
VILMA HOMERO
do site Viva Favela
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