A captação
de recursos pela Lei Rouanet bateu novo recorde em 2004. O
teatro foi o campeão. Somente em São Paulo,
foram beneficiados 81 projetos no valor de R$ 24,7 milhões.
A divulgação desses dados, em reportagem publicada
no dia 25 de fevereiro no Estado, mostrou que eles são
inversamente proporcionais às constantes queixas de
penúria da classe teatral. Em dezembro, o secretário
da Associação de Paulista de Produtores Teatrais
(Apetesp), Paulo Pélico, chegou a fazer uma analogia
entre os artistas paulistanos e os lavradores do semi-árido
Vale do Jequitinhonha (entrevista ao Estado, publicada em
10 de dezembro). Na mesma ocasião, um grupo de artistas
havia pedido audiência no Senado para solicitar mais
recursos para o teatro. Qual a explicação para
essa contradição?
Paulo Pélico reconhece um aumento significativo na
captação por meio da Lei Rouanet. "Antes
de mais nada, muitas dessas captações terão
reflexo em 2005, talvez nisso resida parte desse sentimento
contraditório", diz. "Houve realmente um
aumento na captação, mas a demanda ainda é
maior do que o dinheiro oferecido." Ele credita as dificuldades
dos produtores à ausência de mecanismos de captação
nas esferas municipal e estadual. "A verba destinada
à Lei Mendonça, vinda dos recursos do ISS e
IPTU, só conseguiu cumprir compromissos anteriores.
E nada, absolutamente nada foi feito na esfera estadual. A
lei do ICMS é letra morta."
Mas será só isso? Num primeiro olhar sobre
os maiores captadores (leia ao lado), nota-se desde projetos
que escapam do âmbito do teatro profissional, como o
Criação Teatral, passando por outros que parecem
não se enquadrar na categoria teatro, como A Sociedade
do Amanhã, cujo objetivo é sensibilizar estudantes
sobre a preservação da natureza, até
aqueles muito vagos, como Grandes Baratos, projeto de circulação
de espetáculos 'de qualidade', que não especifica
quais seriam. E a concentração de recursos não
seria outro fator para essa sensação de míngua
de recursos? Só o musical Chicago, por exemplo, concentrou
16% desses R$ 24,7 milhões. "Os musicais são
importantes, não acho que o problema seja esse",
alerta Paulo Pélico. Mas ele defende ajustes na Lei
Rouanet. "O espetáculo de um grupo de cultura
popular não deveria concorrer no mesmo balcão
dos musicais, deveria haver um olhar diferenciado."
Consultor de marketing cultural, Yacoff Sarkovas acha que
a questão é mais ampla. "Dinheiro público
deveria ser distribuído por critérios que obedecessem
um projeto de política cultural. "Dinheiro para
o teatro, mostram esses números, existe, o que não
existe é uma política cultural que defina o
que é de interesse público. Imagine o efeito
positivo de um edital de R$ 24,7 milhões para o teatro?
Um edital com regras claras, definindo uma porcentagem desse
dinheiro destinada à estabilização e
fomento de companhias teatrais, outra para as produções
independentes, outra para os grupos de pesquisa."
Yacoff faz questão de afirmar que defende a existência
de todo tipo de teatro. Mas adverte que raramente a lógica
do mercado coincide com a do interesse público. "São
coisas complementares, raramente estão alinhadas."
Como consultor de empresas, ele defende que patrocínio
privado deve ser feito com inteira liberdade, sem cerceamentos,
e com dinheiro privado. Já o poder público tem
de se responsabilizar pela aplicação do dinheiro
público. "Se o poder público decide que
sua prioridade é produzir musicais da Broadway para
formar mão-de-obra especializada e estimular que sirvam
de modelo para o futuro fortalecimento da indústria
cultural brasileira, ok. Mas assuma e defenda isso como critério.
O fato é que dinheiro público tem de ser distribuído
pela lógica do interesse público, e isso não
é abstração. Basta definir o que é
interesse público na área da cultura. O teatro
deve ser visto como patrimônio da Nação,
algo a ser preservado, assim como os monumentos públicos,
a arquitetura, as bibliotecas."
Eduardo Tolentino, diretor do Grupo Tapa, prefere não
discutir as 'aberrações' do sistema. "Não
quero discutir esse ou aquele espetáculo. No Brasil,
é erro comum a confusão entre distribuição
de verba e política cultural. Sempre se discute o primeiro.
Enquanto não houver esse entendimento, a discussão
não avança e as aberrações permanecem."
O Programa Municipal de Fomento ao Teatro está suspenso
por prazo indeterminado. A lei nº 13.279, aprovada pela
Câmara Municipal em janeiro de 2002, que cria o programa,
"está sendo examinada por um Conselho Jurídico
e precisa ser alterada", informa Zecarlos Andrade, o
novo diretor do departamento municipal de teatro. "Sei
que uma análise bastante apurada está sendo
feita. Não entendo de filigranas jurídicas,
mas tenho participado de algumas reuniões e fui informado
de que existem inconstitucionalidades na lei. O objetivo não
é sua extinção, mas seu aprimoramento."
A classe teatral marcou assembléia na segunda-feira,
no Teatro Fábrica, para debater o tema.
Aprovada por unanimidade e sancionada pela prefeita Marta
Suplicy, a lei do Fomento funcionou durante 2,5 anos, teve
5 edições, beneficiou 53 grupos, que criaram
79 espetáculos e atingiram um público estimado
em 1,3 milhões de espectadores, em diferentes zonas
da cidade. No momento, grupos que já prestaram contas,
entre eles o núcleo dirigido pelo fundador do Arena
José Renato, não receberam a última e
devida parcela pela prestação de serviços.
"Sua suspensão no momento era inevitável.
Não seria possível assumir um novo compromisso
quando o município encontra graves dificuldades para
pagar débitos anteriores", diz Andrade. A cláusula
considerada inconstitucional diz respeito à dotação
orçamentária. A chamada Lei do Fomento vincula
receita, ou seja, o corpo da lei garante verba no orçamento
da cidade para o seu cumprimento. Segundo o Estado apurou,
só leis voltadas para educação e saúde
poderiam vincular receita. Mas há informações
contraditórias. Como a dotação para o
cumprimento do Fomento em 2005, de R$ 9 milhões, já
foi aprovada na Lei do Orçamento, não haveria
ilegalidade no cumprimento deste ano.
Porém a questão da institucionalidade não
é a única. Há outros pontos em discussão,
como o índice de reajuste do valor destinado ao fomento.
"Do jeito que está, pode chegar um momento em
que esse reajuste acabe sendo maior do que o índice
que reajusta a arrecadação do município."
As questões financeiras não são o único
entrave. "A lei define que a comissão que seleciona
os projetos seja escolhida, por meio de votação,
pelos próprios concorrentes, vinculados à Cooperativa
Paulista de Teatro. Evidente que essa comissão acaba
por escolher os grupos cujos trabalhos eles conhecem e acompanham.
O resultado pode ser o beneficiamento de apenas uma tendência
ou segmento da atividade teatral. E há um grande segmento
da classe teatral insatisfeita. Antunes Filho criticou os
critérios dessa escolha", argumenta.
A comissão que seleciona os projetos contemplados
é composta de três representantes escolhidos
pela classe teatral e três pela Secretaria Municipal
de Cultura. A Cooperativa Paulista de Teatro agrupa 80% dos
grupos teatrais da cidade. "Da mesma forma que uma política
para a saúde não se destina aos médicos,
o transporte coletivo não beneficia apenas motoristas
ou a educação aos professores, o programa de
fomento ao teatro destina-se aos cidadãos e não
a uma corporação de ofício", argumenta
Fernanda Rapsarda, integrante do Conselho de Núcleos
Artísticos do Fomento.
Andrade garante que as alterações necessárias
serão feitas mediante ampla discussão com diferentes
segmentos da atividade teatral. "Queremos discutir com
o Zé Celso, com o Antunes, com todos os grupos cooperativados,
com a Apetesp, com todos os interessados." Mas há
um problema de ordem prática. A lei está em
vigor - na prática, não está sendo cumprida.
Emendas, reformas, novas leis, tudo isso toma muito tempo.
E uma lei só pode ser alterada no legislativo. Qual
o prazo? "Não sei definir, mas tenho feito esforços
para que tudo seja resolvido o mais brevemente possível.
E, evidentemente, que depois de discutida, a lei pode ser
votada em regime de urgência."
E qual será a reação da classe teatral
diante disso? "Por enquanto estamos tentando a negociação,
a sensibilização do poder público para
a importância do programa", diz José Renato.
Porém a partir da assembléia da classe teatral,
na segunda-feira, outras decisões serão tomadas.
Quanto aos pagamentos em atraso, Andrade afirma que não
há qualquer possibilidade de não serem cumpridos.
"Tanto o prefeito José Serra, quanto o secretário
Emanoel Araújo já deixaram bem claro que esses
compromissos serão honrados."
BETH NÉSPOLI
do O Estado de S. Paulo
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