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entrevista
22/07/2004
Érika Bechara analisa lei que regulamenta ONGs

No final de junho deste ano, o Senado aprovou o Projeto de Lei do Senado (PLS) 7/2003, que regulamenta o registro, controle e a fiscalização das organizações não-governamentais brasileiras. O projeto não foi bem recebido pelas organizações do Terceiro Setor, que o consideraram de "insuficiente". As ONGs criticaram também o fato de não terem sido convidadas para participar da elaboração do documento.

Erika Bechara, que trabalha há sete anos como assessora jurídica de organizações do Terceiro Setor, explica em entrevista exclusiva ao setor3 detalhes do projeto, redigido pelo senador César Borges, em substituição ao projeto de lei considerado como autoritário, elaborado pelo senador Morazildo Cavalcanti, a partir da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as ONGs, que ele presidia e que teve seus trabalhos concluídos no final de 2002. A advogada comenta as deficiências do projeto, a burocratização que ele cria, e a necessidade de se criar um marco regulatório mais amplo para o Terceiro Setor.

setor3 - Como a sra. avalia o PLS 07/2003, aprovado recentemente pelo Senado?
Erika Bechara - Na verdade, o PLS surgiu um pouco naquele clima de desconfiança da CPI das ONGs [concluída em 2002], quando se começou a pensar que muitas organizações estavam lidando com recursos públicos e privados, mas de uma forma indevida. Isso, enfim, na cabeça de quem resolveu instaurar a CPI...

setor3 - Na sua opinião isso não se verifica?
Erika Bechara - Eu não posso simplesmente dizer que todas as entidades não-governamentais são bem intencionadas; é arriscado demais... São mais de 300 mil entidades. Não posso dizer que todas elas são imbuídas de um espírito construtivo, voltado aos interesses sociais. Mas eu também não posso dizer que a maioria das organizações não tem esse propósito. Num universo de mais de 300 mil entidades, você vai ter, necessariamente, algumas que estão mal-intencionadas. Muitas entidades são constituídas para obter facilidades; a conotação social delas você quase não vê. Isso é inevitável, mas não é a maioria. Não é algo que você possa dizer: "O Terceiro Setor está maculado, está manchado". Eu ainda acredito que a grande maioria está envolvida com a causa, anda corretamente e respeita a lei naquilo que tem que se respeitar.

setor3 - A sra. dizia que o projeto surgiu nesse clima de CPI...
Erika Bechara - Isso. Surgiu o projeto de lei, que é uma idéia assim: "Vamos controlar; nós queremos saber de todas as entidades civis". Mas por quê? A criação de uma fundação passa por um critério prévio de controle público. O Ministério Público vai ver o estatuto, vai ver se o patrimônio que o instituidor daquela fundação está destinando vai cumprir a finalidade definida, vai acompanhar a fundação durante toda a sua vida para ver se os recursos que ela obtém continuam sendo aplicados da forma pretendida pelo instituidor. Todo ano, também presta contas para o MP, apresenta relatório de atividades... As entidades sem fins lucrativos são de dois tipos: as fundações e as associações civis. As fundações se submetem a esse controle prévio, bem rigoroso. Já as associações civis, sofrem um controle menor.

setor3 - E por que essa diferença?
Erika Bechara - Para criar uma associação civil, basta que algumas pessoas se reúnam, criem um estatuto, tenham um objeto lícito (permitido pela lei) e registrem esse estatuto em cartório. Elas vão respeitar algumas formalidades, mas facilmente registra-se o estatuto em cartório. Não tem tanto controle. É por isso que algumas pessoas têm medo. Elas falam: "É tão simples criar, é só fazer um estatuto, juntar algumas pessoas e registrar em cartório... que controle se tem sobre elas?" O problema é que algumas pessoas não entendem que o fato de não ter um órgão acompanhando constantemente a atuação de uma entidade não faz com que ela cometa atrocidades. Por isso pensou-se em efetivar um controle mais de perto dessas entidades como um todo. O projeto de lei não diferencia as fundação das associação; ele quer controlar todas elas.

setor3 - Que pontos a sra. citaria como falhos no projeto?
Erika Bechara - O projeto tem lacunas. E uma lei, quando é criada com muitas lacunas, é sempre de aplicação complicada. Por exemplo: ele diz que todas as entidades têm que se cadastrar em um Cadastro Nacional de Organizações Não-governamentais. Mas ele não diz qual a sanção para a entidade que não se cadastrar. Isso significa que ela não vai poder funcionar? Significa que ela vai ser ilegal? O que isso implica para a entidade? Diz também que a organização tem que prestar contas dos recursos privados. Isso é um grande absurdo! Tem que prestar contas para o Ministério Público dos recursos privados que ela recebe... Primeiro que, o que o poder público tem a ver com isso? Segundo, qual é a sanção também? E se ela não prestar contas, o que acontece? Ela precisa saber qual a conseqüência à qual está submetida se ela não fizer isso. Essas lacunas são negativas.

setor3 - Além dessas lacunas, pode-se dizer que o projeto é insuficiente?
Erika Bechara - Essa lei tem um objetivo único e exclusivo que é controlar a criação e o trabalho das entidades. Ela não é uma lei voltada para a regulamentação do Terceiro Setor. O que nós achamos importante - e que gostaríamos, até - é ter uma lei para a regulamentação do Terceiro Setor, pensando em todas as vertentes relacionadas às entidades não-governamentais...desde um incentivo ao desenvolvimento das entidades, um apoio, um fortalecimento, e, claro, formas de controle para impedir as más entidades de atuarem como se fossem do Terceiro Setor. Isso tudo é importante, só que essa lei não tem esse objetivo. Essa lei não foi criada para regulamentar o Terceiro Setor. A lei só diz o seguinte: "Eu quero saber quais as entidades que estão funcionando no país, quero que elas prestem contas do que fazem e ponto". Então, é uma lei com um objetivo muito pequeno, muito menor do que uma regulamentação do Terceiro Setor.

setor3 - E o marco legal do Terceiro Setor?
Erika Bechara - O marco legal do Terceiro Setor é a lei 9790, de 1999. Essa lei, na verdade, não disciplina todo o Terceiro Setor. Ela é chamada de marco legal porque é o primeiro grande passo para se dar uma nova feição para o Terceiro Setor. Mas se você for ver a lei, vai verificar que a preocupação maior é instituir uma qualificação para as entidades que quiserem. Ela não é obrigatória; não são normas obrigatórias para o Terceiro Setor todo. São normas para aquelas entidades que queiram obter a qualificação de OSCIP, especificamente.

setor3 - E qual é a vantagem e desvantagem de obter essa qualificação de OSCIP?
Erika Bechara - Desvantagem eu não vejo nenhuma. Talvez possa ter, porque o artigo 18 dessa lei (que inclusive o projeto de lei revoga) diz que uma entidade que tem o título de OSCIP não pode ter outros. Então, a entidade que tem o título de OSCIP não pode ter o título de Utilidade Pública (UP) ou o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS). Se elas pegam o título de OSCIP, perdem os outros títulos. A única desvantagem que eu vejo é essa. E é uma desvantagem para algumas entidades, não para todas. Agora, vantagem, por essa lei das OSCIPs, é que o poder público pode firmar termos de parceria com as OSCIPs e, por meio desses termos, pode passar recursos públicos para que elas apliquem em projeto de interesse coletivo, de interesse social.

setor3 - Mas atualmente o poder público também firma parcerias com entidades que não têm essa qualificação...
Erika Bechara - Atualmente, ele firma convênios com entidades de UP e, em muitos casos, com entidades sem nenhuma qualificação, sem nenhum tipo específico.

setor3 - A sra. vê isso como um problema?
Erika Bechara - Não vejo exatamente como um problema porque toda vez que o poder público repassa recursos - seja para uma OSCIP, para uma UP ou para uma entidade sem nenhum título -, ele tem que efetuar um controle dos recursos. Então, independentemente da qualificação que essa entidade tenha, ela é obrigada a prestar contas da aplicação desses recursos e, se ela aplicar mal esses recursos, vai ser penalizada, ela vai ser responsabilizada. Então, a questão não é a qualificação que ela tenha ou não, mas é a obrigatoriedade de prestar contas da utilização dos recursos públicos. E isso é corretíssimo, tem que ter mesmo.

setor3 - Mas o projeto de lei prevê que o poder público só pode firmar parcerias com entidades que tenham essas qualificações prévias. Não é isso?
Erika Bechara - É, de fato, isso é uma criação desse projeto. A lei das OSCIPs diz que o poder público pode passar recursos para as OSCIPs, mas não diz que não pode passar para outras entidades que não sejam OSCIPs. Ela não proíbe; diz que quem é OSCIP pode pleitear esse tipo de recurso. Agora, esse projeto de lei, diz exatamente que o poder público, a partir de agora, só vai poder passar dinheiro, sob forma de subvenção, financiamento ou incentivo fiscal, para entidades qualificadas como OSCIP, UP, organização social, ou se for uma entidade que tenha atestado de registro no CNAS [Conselho Nacional de Assistência Social], ou ainda entidade reconhecida como entidade de apoio. Se essa lei for aprovada, somente as entidades que tiverem esses títulos vão poder receber dinheiro público.

setor3 - E o que a sra. acha disso?
Erika Bechara - Não vejo como o maior prejuízo do projeto. Talvez seja uma forma de regulamentar o uso do recurso público. Não vejo como uma medida imprescindível, mas também não vejo como uma medida negativa porque o poder público tem esse direito. Se o dinheiro é público, e vai ser repassado para uma entidade, o poder público tem o direito de querer conhecer essa entidade e de ter um cadastro prévio. Até aí, não vejo como um grande retrocesso, porque é uma forma de controlar o dinheiro público. O maior aberração desse projeto é o poder público querer saber ou querer interferir na aplicação do recurso privado da entidade. Porque uma coisa é ele querer saber para quem está dando o dinheiro público, e exigir prestação de contas desse dinheiro. Está certíssimo. Agora, o projeto exige também que uma entidade que receba recursos privados também preste contas. Aí eu pergunto, tem sentido? Uma empresa resolve pegar dinheiro do próprio bolso, passá-lo para uma associação civil e a associação tem que prestar contas do dinheiro? Que intervenção é essa? No caso de uma empresa, ela aplica seu dinheiro como quiser, desde que recolha os impostos direitinho. E, aqui, eu não estou entendendo por que a associação civil tem que prestar contas desses recursos privados para o poder público. O que o poder público tem a ver com esse dinheiro se não é dele?

setor3 - Quando uma entidade é reconhecida como organização sem fins lucrativos, ela recebe uma série de isenções fiscais. Ela não recebe diretamente recursos públicos, mas deixa de pagar para o governo. Será que essa prestação de contas que o projeto propõe não seria uma forma de verificar se a entidade está aplicando seus recursos com fins públicos e não privados?
Erika Bechara - É legítimo que o governo queira saber para quem ele está concedendo os benefícios fiscais. Ele pode até, eventualmente, querer conhecer a entidade, pedir que ela forneça relatórios para ele saber se, de fato, ela é uma entidade que aplica recursos nos seus objetivos sociais. Isso é previsto pelo código tributário. Esse acompanhamento é possível de ser feito. Mas o que o poder público tem que saber não é como aplico o recurso do outro e sim qual é o meu objetivo, se eu tenho direito à isenção, se eu sou de fato uma entidade voltada a fins sociais. Ele pode até requerer relatórios para verificar se não sou uma fachada. Mas, talvez, um outro tipo de controle, não a prestação de contas para o Ministério Público, só para mostrar como eu estou recebendo os recursos. Então, tem que se pensar em algum tipo de controle, que não seja uma intromissão indevida do poder público nos recursos ou na atuação dessa entidade.

setor3 - Na sua avaliação, esse PL breca de alhuma forma o crescimento e desenvolvimento do Terceiro Setor?
Erika Bechara - Ele não breca, mas também não estimula nem um pouco, porque começa a criar um excesso de burocracia... Ele não impede o desenvolvimento de uma atividade do Terceiro Setor, mas diz que a entidade vai ter que prestar contas de tudo, de seus recursos privados, públicos, vai ter que estar cadastrada, obter qualificações, apresentar relatórios... Então, cria uma burocracia (a pretexto de criar um controle), que ou vai gerar um descumprimento por parte das entidades, ou um desestímulo. Por que burocratizar tanto? Ele poderia pelo menos pensar em um sistema único de controle, que facilitasse e agilizasse e que não obrigasse a entidade a prestar contas e informações a vários órgãos. Então, tem que se pensar em uma diminuição dessa burocracia, não aumentar.

setor3 - A Abong divulgou, recentemente, um informe dizendo que o PL 07/2003 não reconhecia a importância do Terceiro Setor para o processo democrático e não fazia uma diferenciação entre os diversos tipos de organizações existentes no Brasil. A sra. concorda?
Erika Bechara - É aquilo que havíamos falado no início. Essa lei tem um outro objetivo. Acho que, o que a Abong quis dizer é que teria sido importante haver uma mobilização dos senadores, deputados, da sociedade civil para discutir uma regulamentação efetiva do Terceiro Setor. O que fizeram aqui foi uma medida paliativa: "Vamos criar uma lei só para criar um controle determinado ali e ponto". Essa lei faz muito pouco. O Terceiro Setor está precisando de uma lei para, talvez, regulamentar a sua atividade como um todo, não um aspecto específico. A crítica da Abong, me parece, foi justamente essa: ao invés de pensarem em uma coisa macro, foram pensar em uma 'firulinha', em uma coisa 'pequenininha...'

setor3 - Nesse sentido, seria produtivo chamar a sociedade civil para discutir uma regulamentação do Terceiro Setor em vez de a questão ficar restrita apenas aos senadores e deputados?
Erika Bechara - Com certeza. Um projeto de lei, sem a participação da sociedade civil organizada - de todo o Terceiro Setor -, que é o maior interessado, não tem legitimidade nenhuma.

setor3 - Você acha que vai ter uma mobilização efetiva contra a aprovação desse projeto de lei?
Erika Bechara - Eu acredito que sim. Ele foi aprovado recentemente no Senado, mas agora eu já tenho visto artigos em vários meios de comunicação. A Abong, o Gife já se manifestaram. Então está nascendo uma mobilização contra esse projeto de lei.


LAURA GIANNECHNNI
do site setor 3

   
 
 
 

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