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No final de junho deste ano, o Senado aprovou o Projeto de
Lei do Senado (PLS) 7/2003, que regulamenta o registro, controle
e a fiscalização das organizações
não-governamentais brasileiras. O projeto não
foi bem recebido pelas organizações do Terceiro
Setor, que o consideraram de "insuficiente". As
ONGs criticaram também o fato de não terem sido
convidadas para participar da elaboração do
documento.
Erika Bechara, que trabalha há sete anos como assessora
jurídica de organizações do Terceiro
Setor, explica em entrevista exclusiva ao setor3 detalhes
do projeto, redigido pelo senador César Borges, em
substituição ao projeto de lei considerado como
autoritário, elaborado pelo senador Morazildo Cavalcanti,
a partir da Comissão Parlamentar de Inquérito
sobre as ONGs, que ele presidia e que teve seus trabalhos
concluídos no final de 2002. A advogada comenta as
deficiências do projeto, a burocratização
que ele cria, e a necessidade de se criar um marco regulatório
mais amplo para o Terceiro Setor.
setor3 - Como a sra. avalia o PLS 07/2003,
aprovado recentemente pelo Senado?
Erika Bechara - Na verdade, o PLS surgiu
um pouco naquele clima de desconfiança da CPI das ONGs
[concluída em 2002], quando se começou a pensar
que muitas organizações estavam lidando com
recursos públicos e privados, mas de uma forma indevida.
Isso, enfim, na cabeça de quem resolveu instaurar a
CPI...
setor3 - Na sua opinião isso não
se verifica?
Erika Bechara - Eu não posso simplesmente
dizer que todas as entidades não-governamentais são
bem intencionadas; é arriscado demais... São
mais de 300 mil entidades. Não posso dizer que todas
elas são imbuídas de um espírito construtivo,
voltado aos interesses sociais. Mas eu também não
posso dizer que a maioria das organizações não
tem esse propósito. Num universo de mais de 300 mil
entidades, você vai ter, necessariamente, algumas que
estão mal-intencionadas. Muitas entidades são
constituídas para obter facilidades; a conotação
social delas você quase não vê. Isso é
inevitável, mas não é a maioria. Não
é algo que você possa dizer: "O Terceiro
Setor está maculado, está manchado". Eu
ainda acredito que a grande maioria está envolvida
com a causa, anda corretamente e respeita a lei naquilo que
tem que se respeitar.
setor3 - A sra. dizia que o projeto surgiu
nesse clima de CPI...
Erika Bechara - Isso. Surgiu o projeto de
lei, que é uma idéia assim: "Vamos controlar;
nós queremos saber de todas as entidades civis".
Mas por quê? A criação de uma fundação
passa por um critério prévio de controle público.
O Ministério Público vai ver o estatuto, vai
ver se o patrimônio que o instituidor daquela fundação
está destinando vai cumprir a finalidade definida,
vai acompanhar a fundação durante toda a sua
vida para ver se os recursos que ela obtém continuam
sendo aplicados da forma pretendida pelo instituidor. Todo
ano, também presta contas para o MP, apresenta relatório
de atividades... As entidades sem fins lucrativos são
de dois tipos: as fundações e as associações
civis. As fundações se submetem a esse controle
prévio, bem rigoroso. Já as associações
civis, sofrem um controle menor.
setor3 - E por que essa diferença?
Erika Bechara - Para criar uma associação
civil, basta que algumas pessoas se reúnam, criem um
estatuto, tenham um objeto lícito (permitido pela lei)
e registrem esse estatuto em cartório. Elas vão
respeitar algumas formalidades, mas facilmente registra-se
o estatuto em cartório. Não tem tanto controle.
É por isso que algumas pessoas têm medo. Elas
falam: "É tão simples criar, é só
fazer um estatuto, juntar algumas pessoas e registrar em cartório...
que controle se tem sobre elas?" O problema é
que algumas pessoas não entendem que o fato de não
ter um órgão acompanhando constantemente a atuação
de uma entidade não faz com que ela cometa atrocidades.
Por isso pensou-se em efetivar um controle mais de perto dessas
entidades como um todo. O projeto de lei não diferencia
as fundação das associação; ele
quer controlar todas elas.
setor3 - Que pontos a sra. citaria como
falhos no projeto?
Erika Bechara - O projeto tem lacunas. E
uma lei, quando é criada com muitas lacunas, é
sempre de aplicação complicada. Por exemplo:
ele diz que todas as entidades têm que se cadastrar
em um Cadastro Nacional de Organizações Não-governamentais.
Mas ele não diz qual a sanção para a
entidade que não se cadastrar. Isso significa que ela
não vai poder funcionar? Significa que ela vai ser
ilegal? O que isso implica para a entidade? Diz também
que a organização tem que prestar contas dos
recursos privados. Isso é um grande absurdo! Tem que
prestar contas para o Ministério Público dos
recursos privados que ela recebe... Primeiro que, o que o
poder público tem a ver com isso? Segundo, qual é
a sanção também? E se ela não
prestar contas, o que acontece? Ela precisa saber qual a conseqüência
à qual está submetida se ela não fizer
isso. Essas lacunas são negativas.
setor3 - Além dessas lacunas, pode-se
dizer que o projeto é insuficiente?
Erika Bechara - Essa lei tem um objetivo
único e exclusivo que é controlar a criação
e o trabalho das entidades. Ela não é uma lei
voltada para a regulamentação do Terceiro Setor.
O que nós achamos importante - e que gostaríamos,
até - é ter uma lei para a regulamentação
do Terceiro Setor, pensando em todas as vertentes relacionadas
às entidades não-governamentais...desde um incentivo
ao desenvolvimento das entidades, um apoio, um fortalecimento,
e, claro, formas de controle para impedir as más entidades
de atuarem como se fossem do Terceiro Setor. Isso tudo é
importante, só que essa lei não tem esse objetivo.
Essa lei não foi criada para regulamentar o Terceiro
Setor. A lei só diz o seguinte: "Eu quero saber
quais as entidades que estão funcionando no país,
quero que elas prestem contas do que fazem e ponto".
Então, é uma lei com um objetivo muito pequeno,
muito menor do que uma regulamentação do Terceiro
Setor.
setor3 - E o marco legal do Terceiro Setor?
Erika Bechara - O marco legal do Terceiro
Setor é a lei 9790, de 1999. Essa lei, na verdade,
não disciplina todo o Terceiro Setor. Ela é
chamada de marco legal porque é o primeiro grande passo
para se dar uma nova feição para o Terceiro
Setor. Mas se você for ver a lei, vai verificar que
a preocupação maior é instituir uma qualificação
para as entidades que quiserem. Ela não é obrigatória;
não são normas obrigatórias para o Terceiro
Setor todo. São normas para aquelas entidades que queiram
obter a qualificação de OSCIP, especificamente.
setor3 - E qual é a vantagem e desvantagem
de obter essa qualificação de OSCIP?
Erika Bechara - Desvantagem eu não
vejo nenhuma. Talvez possa ter, porque o artigo 18 dessa lei
(que inclusive o projeto de lei revoga) diz que uma entidade
que tem o título de OSCIP não pode ter outros.
Então, a entidade que tem o título de OSCIP
não pode ter o título de Utilidade Pública
(UP) ou o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência
Social (CEBAS). Se elas pegam o título de OSCIP, perdem
os outros títulos. A única desvantagem que eu
vejo é essa. E é uma desvantagem para algumas
entidades, não para todas. Agora, vantagem, por essa
lei das OSCIPs, é que o poder público pode firmar
termos de parceria com as OSCIPs e, por meio desses termos,
pode passar recursos públicos para que elas apliquem
em projeto de interesse coletivo, de interesse social.
setor3 - Mas atualmente o poder público
também firma parcerias com entidades que não
têm essa qualificação...
Erika Bechara - Atualmente, ele firma convênios
com entidades de UP e, em muitos casos, com entidades sem
nenhuma qualificação, sem nenhum tipo específico.
setor3 - A sra. vê isso como um problema?
Erika Bechara - Não vejo exatamente
como um problema porque toda vez que o poder público
repassa recursos - seja para uma OSCIP, para uma UP ou para
uma entidade sem nenhum título -, ele tem que efetuar
um controle dos recursos. Então, independentemente
da qualificação que essa entidade tenha, ela
é obrigada a prestar contas da aplicação
desses recursos e, se ela aplicar mal esses recursos, vai
ser penalizada, ela vai ser responsabilizada. Então,
a questão não é a qualificação
que ela tenha ou não, mas é a obrigatoriedade
de prestar contas da utilização dos recursos
públicos. E isso é corretíssimo, tem
que ter mesmo.
setor3 - Mas o projeto de lei prevê
que o poder público só pode firmar parcerias
com entidades que tenham essas qualificações
prévias. Não é isso?
Erika Bechara - É, de fato, isso é
uma criação desse projeto. A lei das OSCIPs
diz que o poder público pode passar recursos para as
OSCIPs, mas não diz que não pode passar para
outras entidades que não sejam OSCIPs. Ela não
proíbe; diz que quem é OSCIP pode pleitear esse
tipo de recurso. Agora, esse projeto de lei, diz exatamente
que o poder público, a partir de agora, só vai
poder passar dinheiro, sob forma de subvenção,
financiamento ou incentivo fiscal, para entidades qualificadas
como OSCIP, UP, organização social, ou se for
uma entidade que tenha atestado de registro no CNAS [Conselho
Nacional de Assistência Social], ou ainda entidade reconhecida
como entidade de apoio. Se essa lei for aprovada, somente
as entidades que tiverem esses títulos vão poder
receber dinheiro público.
setor3 - E o que a sra. acha disso?
Erika Bechara - Não vejo como o maior
prejuízo do projeto. Talvez seja uma forma de regulamentar
o uso do recurso público. Não vejo como uma
medida imprescindível, mas também não
vejo como uma medida negativa porque o poder público
tem esse direito. Se o dinheiro é público, e
vai ser repassado para uma entidade, o poder público
tem o direito de querer conhecer essa entidade e de ter um
cadastro prévio. Até aí, não vejo
como um grande retrocesso, porque é uma forma de controlar
o dinheiro público. O maior aberração
desse projeto é o poder público querer saber
ou querer interferir na aplicação do recurso
privado da entidade. Porque uma coisa é ele querer
saber para quem está dando o dinheiro público,
e exigir prestação de contas desse dinheiro.
Está certíssimo. Agora, o projeto exige também
que uma entidade que receba recursos privados também
preste contas. Aí eu pergunto, tem sentido? Uma empresa
resolve pegar dinheiro do próprio bolso, passá-lo
para uma associação civil e a associação
tem que prestar contas do dinheiro? Que intervenção
é essa? No caso de uma empresa, ela aplica seu dinheiro
como quiser, desde que recolha os impostos direitinho. E,
aqui, eu não estou entendendo por que a associação
civil tem que prestar contas desses recursos privados para
o poder público. O que o poder público tem a
ver com esse dinheiro se não é dele?
setor3 - Quando uma entidade é reconhecida
como organização sem fins lucrativos, ela recebe
uma série de isenções fiscais. Ela não
recebe diretamente recursos públicos, mas deixa de
pagar para o governo. Será que essa prestação
de contas que o projeto propõe não seria uma
forma de verificar se a entidade está aplicando seus
recursos com fins públicos e não privados?
Erika Bechara - É legítimo
que o governo queira saber para quem ele está concedendo
os benefícios fiscais. Ele pode até, eventualmente,
querer conhecer a entidade, pedir que ela forneça relatórios
para ele saber se, de fato, ela é uma entidade que
aplica recursos nos seus objetivos sociais. Isso é
previsto pelo código tributário. Esse acompanhamento
é possível de ser feito. Mas o que o poder público
tem que saber não é como aplico o recurso do
outro e sim qual é o meu objetivo, se eu tenho direito
à isenção, se eu sou de fato uma entidade
voltada a fins sociais. Ele pode até requerer relatórios
para verificar se não sou uma fachada. Mas, talvez,
um outro tipo de controle, não a prestação
de contas para o Ministério Público, só
para mostrar como eu estou recebendo os recursos. Então,
tem que se pensar em algum tipo de controle, que não
seja uma intromissão indevida do poder público
nos recursos ou na atuação dessa entidade.
setor3 - Na sua avaliação,
esse PL breca de alhuma forma o crescimento e desenvolvimento
do Terceiro Setor?
Erika Bechara - Ele não breca, mas
também não estimula nem um pouco, porque começa
a criar um excesso de burocracia... Ele não impede
o desenvolvimento de uma atividade do Terceiro Setor, mas
diz que a entidade vai ter que prestar contas de tudo, de
seus recursos privados, públicos, vai ter que estar
cadastrada, obter qualificações, apresentar
relatórios... Então, cria uma burocracia (a
pretexto de criar um controle), que ou vai gerar um descumprimento
por parte das entidades, ou um desestímulo. Por que
burocratizar tanto? Ele poderia pelo menos pensar em um sistema
único de controle, que facilitasse e agilizasse e que
não obrigasse a entidade a prestar contas e informações
a vários órgãos. Então, tem que
se pensar em uma diminuição dessa burocracia,
não aumentar.
setor3 - A Abong divulgou, recentemente,
um informe dizendo que o PL 07/2003 não reconhecia
a importância do Terceiro Setor para o processo democrático
e não fazia uma diferenciação entre os
diversos tipos de organizações existentes no
Brasil. A sra. concorda?
Erika Bechara - É aquilo que havíamos
falado no início. Essa lei tem um outro objetivo. Acho
que, o que a Abong quis dizer é que teria sido importante
haver uma mobilização dos senadores, deputados,
da sociedade civil para discutir uma regulamentação
efetiva do Terceiro Setor. O que fizeram aqui foi uma medida
paliativa: "Vamos criar uma lei só para criar
um controle determinado ali e ponto". Essa lei faz muito
pouco. O Terceiro Setor está precisando de uma lei
para, talvez, regulamentar a sua atividade como um todo, não
um aspecto específico. A crítica da Abong, me
parece, foi justamente essa: ao invés de pensarem em
uma coisa macro, foram pensar em uma 'firulinha', em uma coisa
'pequenininha...'
setor3 - Nesse sentido, seria produtivo
chamar a sociedade civil para discutir uma regulamentação
do Terceiro Setor em vez de a questão ficar restrita
apenas aos senadores e deputados?
Erika Bechara - Com certeza. Um projeto
de lei, sem a participação da sociedade civil
organizada - de todo o Terceiro Setor -, que é o maior
interessado, não tem legitimidade nenhuma.
setor3 - Você acha que vai ter uma
mobilização efetiva contra a aprovação
desse projeto de lei?
Erika Bechara - Eu acredito que sim. Ele
foi aprovado recentemente no Senado, mas agora eu já
tenho visto artigos em vários meios de comunicação.
A Abong, o Gife já se manifestaram. Então está
nascendo uma mobilização contra esse projeto
de lei.
LAURA GIANNECHNNI
do site setor 3
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