A imagem
da cidade partida em duas classes parece recente quando se
analisam os conflitos na favela da Rocinha (zona sul do Rio),
que fizeram o carioca evitar a circulação, principalmente
nas duas últimas semanas, em áreas próximas
de favelas. Um mergulho na história urbana das duas
mais importantes cidades brasileiras mostra, no entanto, que
essa divisão, além de ter raízes históricas,
foi também planejada.
Autores de livros sobre a história urbana do Rio e
de São Paulo lembram que a separação
do espaço das duas cidades entre ricos e pobres teve
quase sempre como objetivo facilitar a circulação
de bens e pessoas, ainda que, para isso, fosse necessário
retirar, mesmo que à força, a população
que estava em áreas nobres.
"A população mais pobre nunca foi o foco
do planejamento urbano no Rio. A cidade já nasceu segregada.
Dizer que houve falta de planejamento é um mito. O
principal interesse era aumentar a circulação
de pessoas e mercadorias. O problema é que agora os
conflitos estão atrapalhando a circulação",
diz Fania Fridman, pesquisadora do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e autora do livro "Donos do Rio, em Nome
do Rei".
Ela cita um exemplo histórico da segregação
carioca: a chegada da família real ao Rio, no início
do século 19. Para abrigar a corte de dom João
6º, foi necessário desapropriar cortiços
e aterrar áreas no caminho que levava o rei de sua
residência (na Quinta da Boa Vista, zona norte) ao centro.
Para estimular a ocupação desses terrenos pela
elite, o Estado deu incentivos fiscais para famílias
de nobres que quisessem construir suas casas pelo caminho.
A formação urbana de São Paulo, nesse
ponto, não difere da carioca. A crônica da expulsão
dos pobres paulistanos para a periferia é tão
evidente que aparece na obra de Adoniran Barbosa (1910-1982),
como na canção "Despejo na Favela".
"As intervenções estavam vinculadas à
idéia de renovações urbanas que excluíssem
as áreas de baixa renda da região central. Já
no final do século 19, houve uma lei que proibia expressamente
a criação de cortiços no perímetro
central", afirma o arquiteto e vereador do PT de São
Paulo Nabil Bonduki, autor de "Origens da Habitação
Social no Brasil".
A professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
Maria Ruth Amaral de Sampaio diz que o Estado também
deu incentivos a empresários que construíssem
cortiços na periferia.
Bonduki cita como exemplos de transformação
de espaços ocupados por pobres a abertura da praça
da Sé (antes ocupada pela população de
baixa renda) e o alargamento da rua Libero Badaró (onde
ficavam prostíbulos).
Se o processo de exclusão urbana teve explicação
semelhante no Rio e em São Paulo, a distribuição
da população marginalizada acabou sendo diferenciada.
Para o economista Carlos Lessa, presidente do BNDES (Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e autor
do livro "O Rio de Todos os Brasis", a geografia
carioca e sua formação econômica explicam
por que as favelas foram crescendo nos morros ao lado dos
bairros nobres, diferentemente do que ocorreu em São
Paulo, onde houve concentração nas periferias.
"A tendência no Rio era o melhor terreno ser ocupado
pela elite, enquanto o dispensável ficava disponível.
Como a cidade é espremida entre o mar e a montanha
e isso dificulta o deslocamento, os pobres construíram
suas habitações próximas da elite",
diz. O economista não concorda com a idéia da
cidade partida no caso do Rio: "É verdade que
a cidade nunca foi capaz de incluir os pobres do ponto de
vista da cidadania, mas essa população excluída
sempre teve uma relação simbiótica com
a população rica. O bairro onde mora a pobreza
sobrevive em grande parte prestando serviços à
elite. Não é à toa que a maior favela
do Rio, a Rocinha, fica ao lado de bairros com as maiores
renda per capita, como São Conrado e Gávea".
Para Lessa, essa relação simbiótica ainda
hoje é chave para entender a questão da violência.
"Você não consegue explicar o poder do tráfico
sem explicar o poder de compra do asfalto", diz. Ele
afirma que as tentativas recentes de urbanização
das favelas cariocas foram bem-sucedidas ao melhorar as condições
de vida em algumas áreas, mas não foram capazes
de eliminar o poder do tráfico.
Maria Sampaio afirma que a desigualdade urbana também
ajuda a entender a violência em São Paulo. "Há
ruas onde você pensa estar numa capital de primeiro
mundo, enquanto, ao lado, populações carentes
jogam bolas nas ruas em troca de moedas. Quando isso se junta
ao desemprego, criam-se condições mais propícias
para o aumento da violência".
ANTÔNIO GOIS
da Folha de S.Paulo
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