Terça-feira
à tarde. Enquanto um helicóptero da Polícia
Militar sobrevoa baixo a favela da Mangueira, no sopé
do morro, sentado em bancos da Vila Olímpica, um grupo
de mães conversa com uma psicóloga no mesmo
instante em que suas filhas, concentradíssimas, fazem
aula de balé. Não muito distante dali, 24 meninas
com idades entre 7 e 12 anos correm pelas ruelas do Jacarezinho
para, em vez de brincar, chegar a tempo na quadra da associação
de moradores, onde, com suas malhas pretas e cabelos presos
com rede, vão assistir a mais uma aula de balé.
Àquela hora, cenas iguais se repetem em mais oito comunidades
da cidade, da Zona Norte à Sul, do Tuiuti e Salgueiro
ao Cantagalo e até a Rocinha.
A invasão nas favelas de uma dança que por
mais de meio século foi passatempo somente de moças
ricas ou de classe média atende pelo nome de Dançando
Para Não Dançar. O projeto concebido e carregado
pela bailarina Thereza Aguilar desde 1995 vem promovendo uma
revolução nada silenciosa das sapatilhas nas
áreas pobres da cidade.
Parcerias internacionais
Hoje, são 450 alunos em dez pontos, com direito
a assistência psicológica e social, treinamento
musical, atendimento dentário (inclusive de ortodontia),
encontros de pais, convênios com o Balé Nacional
de Cuba e com uma escola de dança em Berlim (a Staatliche
Ballet Schule). O financiamento é da Petrobras, que
há três anos dá R$ 374 mil anuais. Na
ponta do lápis, Thereza faz milagre com cerca de R$
80 por aluno.
"Nem todos que fazem aula vão ser bailarinos,
mas já é uma vitória abrir o leque de
atividades dessas crianças e adolescentes. A arte em
si tem a chance de transformar através da disciplina,
do respeito e da cidadania. E a prática já nos
mostrou que muda o dia-a-dia de quem faz mas também
de quem está em volta", diz Thereza, que mistura
a didática e a rigidez típicas de alguém
que estudou balé na Alemanha comunista e em Cuba. "A
dança pura não resolve nada. É o entorno,
com a assistência social e todos os outros benefícios,
que ajuda a amenizar os problemas que cercam essas crianças".
Das primeiras aulas para duas dúzias de meninas na
salinha improvisada do Cantagalo em 1995 até as salas
equipadas de hoje, com linóleo e espelhos, Thereza
tem muitas histórias para contar e se orgulhar. Nunca
fechou nenhum posto — embora, na semana passada, tenha
sofrido com a violência na Rocinha, onde foi obrigada
a suspender as aulas. E nunca diminuiu o número de
beneficiados — a cada ano a cifra sobe. Não por
acaso, entre os 32 projetos sociais de dança no Rio
mapeados pela crítica Silvia Soter na pesquisa “Elementos
de uma cartografia da dança carioca” (artigo
da coletânea “Lições de Dança
4”, a ser lançada na próxima semana),
ela merece lugar de destaque. Se não é o pioneiro
pioneiro, o Dançando é o segundo projeto mais
antigo. Mas nenhum outro tira-lhe o cetro de maior de todos.
Os resultados estão nas caras e nas pontas dos pés
dos bailarinos. E melhor, de seus pais, mães e avós.
"Sou nascida e criada no Rio, mas só com 50 anos
é que entrei pela primeira vez no Teatro Municipal,
por causa do Dançando Para Não Dançar",
conta Selma Maria Bernardo Marques, dona da cantina vizinha
à sala do projeto encarapitada no alto do Cantagalo,
dentro do Ciep João Goulart. "Fui lá para
ver as meninas dançando e descobri um mundo que nem
imaginava".
Fã da trupe do Dançando, dona Selma não
perde as apresentações da turma mais velha (de
13 a 17 anos) — agora já chamada de companhia
— que vira e mexe se apresenta em palcos da cidade,
como o Municipal, no ano passado, no aniversário do
teatro, ou, esta noite, no Teatro Odylo Costa, Filho, da Uerj,
no 21 Festival Nacional de Dança. São coreografias
clássicas, como “Paquita” e “Coppélia”,
sempre muito bem ensaiadas, fruto de encontros noturnos da
turma, no Cantagalo e, aos sábados, na Mangueira.
Aulas na Maria Olenewa
No fim do ano, como já virou tradição,
todos os 450 alunos sobem em cena para um espetáculo
a céu aberto. Já estiveram na Cinelândia
e no Aterro do Flamengo.
"Minha maior surpresa foi perceber que aqui não
tem tempo ruim, todo mundo ensaia até a exaustão,
até porque ninguém está acostumado com
vida tranqüila", avalia Paulo Rodrigues, primeiro
bailarino do Teatro Municipal e hoje braço direito
de Thereza no projeto. "Acabamos com essa história
de que balé é só para a elite".
A megaestrutura que tem entre seus quadros professores como
Paulo e Norma Pinna (do Municipal) transformou-se no maior
fornecedor de jovens bailarinas para a Escola de Dança
Maria Olenewa — principal referência do balé
clássico aqui. Só este ano, 55 alunas do Dançando
também freqüentam as salas da escola da Lapa.
Para que chegassem lá, o projeto pagou a inscrição
nas provas (R$ 150) e a anuidade (R$ 150), comprou uniformes
e sapatilhas e agora se encarrega de fornecer vale-transporte.
"A gente aprende muito mais do que as meninas que só
têm aulas aqui", diz, orgulhosa, Karen Caroline
da Silva, de 9 anos, chegando da Lapa para mais uma aula no
Dançando do Jacarezinho.
As informações são do jornal O Globo.
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