Embora
97% das crianças e adolescentes brasileiras que têm
entre 7 e 14 anos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (PNAD) de 2002, estão incluídas
no sistema escolar, especialistas acreditam que a dificuldade
do ensino público no país seja a falta de qualidade.
"O grande problema da Educação Básica
é a qualidade e talvez esse seja o maior desafio e
o maior impasse brasileiro", afirma o professor Célio
da Cunha, assessor especial da Organização das
Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (Unesco). Ele acredita que o Brasil
tem tudo para atingir o objetivo de desenvolvimento proposto
pela ONU. No entanto, adverte que os 3% de crianças
restantes que estão fora da escola, representam 1,5
milhão de crianças - um número que não
pode ser desprezado.
Para Isa Guará, assessora da coordenação
geral do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação,
Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) -
ONG cujo foco prioritário é a educação
pública -, é preciso levantar outras ressalvas.
A "educação básica", no Brasil,
inclui além do Ensino Fundamental, a Educação
Infantil e o Ensino Médio. "Nessas modalidades,
a porcentagem de atendimento está longe de ser universal.
Além disso, há grande disparidade regional e
outros desequilíbrios com relação à
universalização do Ensino Fundamental. Algumas
regiões têm índices bem mais baixos do
que 97%. E um bom número de crianças e adolescentes
mais vulneráveis (entre os quais estão os portadores
de deficiência) ainda não tem inserção
ou tem inserção irregular ou precária
na escola", afirma Isa.
A definição do que é "educação
básica" varia para cada país. De acordo
com Camilla Croso, coordenadora do Observatório da
Educação, as metas do milênio usam o termo
em inglês "primary education". No Brasil,
a expressão foi traduzida como "educação
básica". No entanto, o termo original, segundo
a especialista, refere-se ao nosso "Ensino Fundamental",
dando ênfase para o ensino de 1ª a 4ª série.
Ela explica que o Brasil, atualmente, trabalha com outra
meta, muito mais ambiciosa e definida no Plano Nacional de
Educação (PNE). A diretriz prevê, até
2011, a garantia da matrícula de 100% das crianças
de 7 a 14 anos no Ensino Fundamental e de todos aqueles que
não concluíram essa etapa de estudos na idade
adequada. Além disso, exige a expansão de atendimento
aos demais níveis de ensino (Educação
Infantil, Ensino Médio e Superior). Sendo assim, Camilla
acredita que a meta da ONU é possível de ser
alcançada.
O problema, portanto, parece não ser apenas a garantia
do número de vagas, mas aumentar a qualidade do ensino.
Camilla afirma que um fator que contribui para isso é
que o Brasil não tem indicadores de qualidade na educação.
Ela aponta que um passo importante a ser dado pelo Ministério
da Educação seria criar um sistema de avaliação
da qualidade. Ela diz que a existência do Sistema Nacional
de Avaliação da Educação Básica
(Saeb), que reúne informações de estudantes
de 4ª à 8ª séries e da 3ª série
do Ensino Fundamental, não é suficiente.
O próprio Diretor de Avaliação da Educação
Básica, Carlos Henrique Ferreira de Araújo,
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
"Anísio Teixeira", admite "não
saber se o Brasil vai atingir a meta". No entanto, ele
garante que o esforço que hoje existe na Educação
Nacional é para, primeiro, conseguir melhorar os indicadores
de fluxo educacional (garantir que mais crianças estejam
em sala de aula e consigam chegar até o final do Ensino
Médio), pois de cada 100 crianças que se matriculam
no Ensino Fundamental, seis terminam essa etapa da Educação
e três concluem o Ensino Médio. E depois, melhorar
a qualidade do ensino.
"A gente precisa ter uma inclusão com qualidade
na educação", afirma Carlos Henrique. Ele
acredita que, para isso, é necessário "lembrar
que os sistemas de ensino pertencem aos Estados e Municípios
na Educação Básica. É preciso
criar políticas públicas robustas para a melhora
da educação básica. Mas só isso
não vai resolver porque boa parte dos fatores que determinam
a qualidade de ensino está fora da escola. Isso se
refere a questões ligadas à exclusão
social, à pobreza, ao pouco hábito cultural,
à violência doméstica, enfim, tudo que
desestrutura a criança e as famílias",
avalia.
Nesse sentido, Vera Masagão Ribeiro, coordenadora
de programas da Ação Educativa, acredita que
programas sociais como o Bolsa-Escola e o Renda-Mínima
poderiam ajudar, pois os maiores problemas estão na
população de baixa renda.
Investimento
O aumento das verbas destinadas à educação
é levantado por diversos especialistas como ponto fundamental
para a melhoria da qualidade de ensino no Brasil. Juçara
Maria Dutra Vieira, diretora da Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)
levanta uma questão interessante.
Segundo ela, o número de matrículas de crianças
entre 7 e 14 anos cresceu muito nos últimos 40 anos,
motivado pelo processo de urbanização e por
um reconhecimento por parte da sociedade de que a educação
é um fator importante para o desenvolvimento pessoal
e da nação. Entretanto, a expansão do
número de vagas não foi acompanhada do investimento
correspondente necessário. Na sua avaliação,
esse seria um dos motivos pelos quais o Ensino Fundamental
convive com tantos problemas.
Para Vera Masagão, existe "uma resistência
ao gasto com educação" no Brasil. Atualmente,
4,5% do Produto Interno Bruto (PIB) são repassados
à educação. O Plano Nacional de Educação
havia previsto um repasse de recursos da ordem de 7% do PIB.
No entanto, a medida foi vetada, em 2001, pelo então
presidente Fernando Henrique Cardoso e, até hoje, não
foi revista pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A articulação formal entre União, Estados
e Municípios para a criação de uma política
permanente para a Educação também é
um passo necessário rumo à qualidade do ensino
público. A criação do Fundo de Desenvolvimento
e Manutenção da Educação Básica
(Fundeb), que substituiria o atual Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização
do Magistério (Fundef) também pode contribuir.
Fundeb
Camilla Croso explica que a aprovação
desse Fundo representaria um avanço que, por enquanto,
seria conceitual, porque olha para a Educação
Básica como um todo, sem focalizar no Ensino Fundamental
como acontece com o Fundef e que gera a marginalização
das outras etapas e modalidades de ensino.
A questão que vem sendo bastante debatida, no entanto,
é quanto aos recursos. "Esse é um nó
que ainda precisa ser desatado", afirma Camilla. Ela
acredita que recursos adicionais da União são
necessários. E que o orçamento seja pensado
a partir do "custo-aluno-qualidade" e não
apenas do "custo-aluno-mínimo", como trabalha
atualmente o Fundef. "Essa é a pressão
que os movimentos sociais vêm fazendo ao MEC",
diz a representante do Observatório da Educação.
O problema é que esse é um cálculo
complexo, que ainda não foi definido porque depende
da identificação de quais são os fatores
determinantes para a qualidade e que peso eles têm.
O Fundeb ainda não foi aprovado. Uma proposta de emenda
constitucional (PEC) foi enviada para apreciação
do presidente e a expectativa é que seja aprovada até
o final do ano, junto com uma lei que detalha o financiamento.
Diferenças regionais
Como resume o professor Célio da Cunha, "A
melhoria da qualidade do ensino público passa pela
melhoria da infra-estrutura da escola; por uma forte melhoria
na formação dos docentes; um eficiente sistema
de acompanhamento e monitoramento da escola. Também
prevê ações emergenciais porque as crianças
estão chegando à 4ª série do Ensino
Fundamental sem saber ler e escrever".
Sobre as diferenças regionais, ele avalia que as
escolas estão inseridas em contextos sócio-políticos
e culturais diferentes e que isso, no Brasil, esbarra na má
distribuição de renda. Célio Cunha acredita
que, para superar esse problema, é preciso que o Estado
crie uma política de "discriminação
positiva", no sentido de destinar mais recursos para
os locais mais pobres. O mais importante, na sua opinião,
é promover uma distribuição iníqua
dos recursos públicos para sonhar com uma igualdade
maior.
Evasão escolar
Os índices de evasão escolar no Brasil
são altos. De acordo com a Sinopse da Educação
Básica de 2003, em 2002, o número de alunos
que abandonou o Ensino Fundamental é igual ao número
de estudantes que o concluiu: 2,8 milhões de crianças.
No Ensino Médio, 1,1 milhão de estudantes abandonou
os estudos e 1,9 concluiu.
Para tentar reverter esse quadro, na opinião de Juçara
Vieira, da CNTE, é preciso motivar os alunos e capacitar
os professores. "Os alunos continuam inteligentes e,
teoricamente, hoje seria até mais fácil para
a criança aprender. O não aprendizado do aluno
não se justifica". Por isso, ela acredita que
é preciso também dar voz aos estudantes, ouvir
o que eles têm a dizer e explicar a eles porque estão
aprendendo determinados conceitos, que às vezes parecem
não ter aplicação em suas vidas.
Também é preciso criar um clima favorável
nas escolas e investir em recursos humanos. Citando uma pesquisa
do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília,
Célio da Cunha afirma que os professores brasileiros
não estão motivados. No entanto, um outro estudo
da UNESCO, sobre o perfil dos professores, revela que eles
estão mais satisfeitos atualmente do que no início
de sua carreira. O assessor especial da Unesco explica que
isso acontece porque muitos professores resolveram seguir
essa carreira não por vocação, mas porque
não encontraram outra forma de se inserirem socialmente.
Acabaram indo para o Magistério e agora se sentem mais
satisfeitos. No entanto, isso também é uma das
causas da má qualidade do ensino.
LAURA GIANNECHINNI
do site Setor3
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