Debaixo do pé de amora, o
aposentado Claudio Picelli observa as galinhas, a jaqueira
cheia de frutos, os pés de ipê e, ao fundo, um
cenário diferente: o trânsito caótico
da Marginal do Tietê, que passa na frente da sua casa.
Ele vive na mesma chácara em que nasceu, há
57 anos, adquirida por sua família, de imigrantes italianos,
há um século.
A área de 10 mil metros quadrados,
que fica ao lado da Ponte Julio de Mesquita Neto, resistiu
às reformas no curso do Rio Tietê e ao asfaltamento
da via, mas está sucumbindo diante de um dos maiores
problemas urbanos, o avanço das favelas. A cada dia,
uma parte do terreno é engolida por um novo barraco
da Favela Aldeinha, que começou a nascer há
cerca de três anos e hoje tem quase mil moradores.
A convivência não é
pacífica. Picelli, sua mulher, Lúcia, de 49
anos, e a irmã dele, Inês Picelli Barbará,
de 73, reclamam que os moradores da favela invadem a chácara
para roubar galinhas, põem fogo nos eucaliptos, enrolam
fios de luz nas árvores e levam cavalos para pastar
na propriedade.
"Já não planto
nada. Acaba tudo destruído. É muito triste lembrar
de como isto era e ver o que virou", diz Picelli, olhos
marejados, folheando um álbum de fotos antigas. "Para
ir à escola, tinha de atravessar o Tietê de barco.
Era um paraíso. Agora virou um inferno."
Briga
Já os ocupantes dos cerca de 400 barracos,
iluminados e abastecidos com água graças a gambiarras,
vêem os donos da chácara como vilões que
os querem expulsar. "Paguei R$ 1 mil pela minha casinha
de tábua. Meu marido está desempregado há
quatro anos, desde que foi atropelado. Se tirarem a gente
daqui, vou morar debaixo do viaduto", diz Lenice Pereira
Lima, de 39 anos, mãe de Vitória e Vitor, de
1 e 2 anos.
Os Picellis bem que tentaram recorrer
à Justiça para remover os invasores.
Mas o processo não evoluiu,
já que a própria família enfrenta briga
judicial pelo direito ao terreno. A área foi desapropriada
pela Prefeitura, na gestão Maluf, para a construção
das alças de acesso da Ponte Julio de Mesquita Neto
para a Marginal. Mas eles garantem que nunca receberam a indenização.
Diante do impasse, as obras estão
paradas, os Picellis não podem pôr o imóvel
à venda e os ocupantes da favela ficam mais longe de
regularizar os lotes. Mesmo assim, a comunidade tem se organizado.
Uma placa afixada na frente da favela
traz bem nítido o endereço: "Avenida Presidente
Castelo Branco. CEP 01142-000. Número 5.111".
Abaixo dela há uma caixa de correio. Mas, segundo a
catadora de papelão Elaine Romano dos Santos, de 28
anos, o objeto é ignorado. "O carteiro passa batido,
nunca deixa nada."
Outra queixa é quanto à
falta de telefone. "Uma vez, num incêndio, tivemos
de pedir um celular emprestado para chamar os bombeiros. O
orelhão mais próximo fica a quase um quilômetro",
conta o líder comunitário Heraldo Dias, de 26
anos, que vive de material reciclável.
Dias tem participado de reuniões
com a Prefeitura, na tentativa de viabilizar projetos para
melhorar as condições do local.
Escola
"O Município já obteve a vitória,
em duas instâncias, no processo que apura os reais donos
do terreno", diz o subprefeito da Lapa, Adaucto José
Durigan. "Se chegarmos à vitória definitiva,
planejamos construir moradias populares e transferir o pessoal
da favela para lá. Enquanto isso não ocorre,
eles recebem auxílio de assistentes sociais e têm
acesso ao posto de saúde. Em 2004 planejamos fazer
uma escola na região."
Se a promessa for cumprida, Wiliam
Gomes da Silva, de 9 anos, não precisará mais
pedalar 10 quilômetros para ir e voltar do colégio
no Bom Retiro. "Não achei vaga mais perto",
justifica a mãe, Salete Gomes.
Salete é uma das pessoas mais
populares na Aldeinha. Com o marido, ela toca no bar do Zezito.
É uma mistura de armazém e lanchonete, onde
se pode comprar fiado. Salete anota as contas numa caderneta
e cobra o pagamento a cada 15 dias. "Já cansei
de levar calote. Mas o povo não tem cheque nem sabe
quando vai ter dinheiro."
É uma incerteza que afeta também
os Picellis. Com poucos recursos, eles imaginam o que poderiam
fazer caso fossem indenizados ou tivessem a posse assegurada
pela Justiça. Claudio admite vender a chácara
e mudar para o interior. Já Lúcia e Inês
preferem ficar.
A casa onde a família vive
é simples e antiga e o mato invade as plantações
de mandioca e o jardim, mas ainda assim o aspecto é
o de um oásis. "Poucos imaginam que em plena Marginal
ainda se pode colher amoras, mangas e laranjas", diz
Inês. "O único problema é a favela."
KATIA AZEVEDO
Do jornal O Estado de S. Paulo
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