O padre Rosalvino Moreno estava com uma sóbria bata branca, dessas usadas
por antigos professores. À sua volta, mulheres seminuas -algumas
delas quase totalmente nuas-, travestis exuberantemente fantasiados,
em meio a milhares de foliões sacudindo ao som da bateria
de escola de samba. Rosalvino parecia à vontade e mostrava-se
indiferente à paisagem humana.
Mas se entregava à música, cantando e levantando os braços,
em cima de um carro alegórico da Unidos do Peruche, sábado
à noite, no sambódromo. Naquele clima descontraído e irreverente,
perguntaram-lhe como se sentia enfiado naquele "desfile de
tentações". Bem-humorado, respondeu: "Deus não me deixa ver".
O Carnaval faz parte da vida de Rosalvino -aliás, encontrou
nessa festa a solução de alguns de seus problemas. Há 16 anos,
ele desenvolve projetos educacionais para crianças e jovens
na zona leste. Não sabia como atingir um grupo de crianças
e jovens mais arredios e violentos, alguns integrando gangues.
Não queriam saber de estudar e não tinham interesse na maioria
das atividades educativas oferecidas. Surgiu então a idéia
de criar a Escola de Samba Dom Bosco. "A isca funcionou",
orgulha-se.
Com o tempo, o grupo foi crescendo, conseguiu juntar centenas
de foliões e passaram a desfilar no sambódromo em categorias
inferiores. Era o suficiente para mobilizar crianças e jovens,
entregando-se disciplinadamente aos ensaios. "Foi possível,
a partir disso, trabalhar com eles o prazer do aprendizado,
a harmonia, a importância do trabalho em grupo, da cooperação
e da disciplina."
A idéia não era exatamente apreciada por seus superiores
hierárquicos da Igreja Católica. Chegaram inclusive a recomendar
que deixasse os projetos carnavalescos, cujos ritmos e vestimentas
não se coadunariam com os princípios religiosos. Diplomaticamente,
Rosalvino mostrou como aquela experiência tinha, para aqueles
jovens, uma espécie de dom divino. Não recebeu a aprovação,
mas, pelo menos, ninguém mais o incomodou.
Devido à sua atuação na zona leste, Rosalvino foi convidado
a sair, no sábado passado, num dos carros da Unidos do Peruche,
cujo tema era o "Encontro com a comunidade". Ele acenava a
muitos dos passistas a seu lado, muitos dos quais tinham sido
seus alunos.
Um desses ex-alunos é a madrinha da bateria da Peruche, que,
trajada "a rigor", naquele sábado, veio, suada e sorrindo,
abraçar Rosalvino. No dia seguinte, ela desfilaria na Dom
Bosco. Mas prometia adaptar-se às circunstâncias. "Lá, não
vou pelada", brincou.
Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
na editoria Cotidiano.
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