Com seus
quatro anos de escolaridade, a apresentadora mostra como envelhecer
sem perder a curiosidade
Hebe Camargo achou estranho meu pedido de entrevista sobre
seus 80 anos de idade comemorados neste domingo.
Disse-lhe que gostaria de falar sobre educação.
"Mas eu só fiz o grupo escolar. Nem mesmo cursei
o ginásio.
Faculdade, nem pensar, minha família não tinha
dinheiro", respondeu, imaginando um mal-entendido. Insisti
que gostaria de entender como ela chegou a essa idade com
tanta disposição para o trabalho e aberta a
novidades. "E o que isso tem a ver com escola?",
quis saber, soltando uma gargalhada, como se insinuasse que
a entrevista seria um besteirol jornalístico, talvez
uma pegadinha -afinal, ela sempre foi acusada de cometer gafes,
muitas delas ligadas à pouca escolaridade.
Vamos esquecer os pontos no Ibope e a fortuna acumulada em
tantos anos de carreira, dois indicadores de sucesso profissional.
Comemorar 80 anos, com bom humor para o trabalho, é
um notável exemplo de sucesso educacional, por revelar
uma disposição permanente à reciclagem
-o que, traduzindo, significa uma disposição
ao aprendizado.
Durante a entrevista, ela não se mostrou influenciada
por nenhum professor, até porque ficou pouco tempo
na escola. Não consegui extrair, na conversa, nenhum
profissional que lhe servisse como um exemplo do prazer do
aprendizado.
Venho gravando há dois anos entrevistas com personalidades
que atingem o topo em suas carreiras -e sempre aparece, invariavelmente,
pelo menos uma referência marcante na família,
na escola ou na carreira que teve alguma responsabilidade
no desenvolvimento do talento. Na minha lista estão,
por exemplo, Adib Jatene, Ziraldo, Maurício de Souza,
Drauzio Varella, Miguel Nicolelis, Seu Jorge, Fernanda Montenegro,
Ruy Ohtake e DJ Marky. A mais recente entrevista foi com Gilberto
Gil, alfabetizado pela avó na cozinha. Para Gil, o
aprendizado das palavras veio com um tempero de cheiros e
cores. "Não podia ter melhor professora para o
resto da vida", conta o compositor. As entrevistas estão
neste
link. Minha suspeita é que um dos entraves para
a prosperidade de crianças em famílias muito
pobres não são apenas as escolas ruins, mas
a falta de referências entre adultos sobre o valor do
conhecimento.
Uma cena revelaria a pista de que a apresentadora não
era uma exceção à regra.
Em meio às recordações sobre os programas
de calouro, as mulheres que faziam sucesso no rádio,
o nascimento da televisão, Hebe deixou escapar uma
informação sobre um hábito de seu pai.
Ele a acordava tocando violino.
O pai dela veio do interior (Taubaté) para tocar na
orquestra de uma rádio (Difusora). Caminhando a pé
pelas ruas de São Paulo, Hebe acompanhava o pai, caminhando
pela cidade, para os ensaios e apresentações.
A entrevista se concentrou então no encantamento que
ela tinha diante da paixão do pai pela música
-talvez tudo resumido na lembrança do som do violino,
substituindo o ruído do despertador. Reconheceu, ali,
seu grande exemplo de curiosidade.
Ao buscar um dos seus traços mais fortes nesses 80
anos, ela disse que sempre sentiu curiosidade, com vontade
de conhecer coisas e gente. Falou-me, com a mesma intensidade,
de uma visita que fez a Dubai como sobre entrevistas que fez
num presídio feminino. Certamente, está aí
a força que a manteve, por tanto tempo, fazendo perguntas
num sofá num programa de auditório. "Ainda
me sinto meio criança."
Não conheço o segredo do sucesso. Duvido que
alguém saiba, tantos são os fatores que envolvem
o estrelato, desde questões genéticas até
os estímulos sociais. Mas nunca conheci alguém
de sucesso que não fosse um eterno curioso -e, aliás,
sempre tive a sensação de que os velhos curiosos
parecem nunca envelhecer porque não perderam suas crianças.
Com seus quatro anos de escolaridade, Hebe mostra como envelhecer
sem perder a curiosidade -é uma magistral aula num
mundo em que as pessoas vivem cada vez mais e são condenadas
à inutilidade. Isso significa que o grande papel dos
educadores é serem gerenciadores de curiosidade.
PS - Por falar em velhice, raras vezes assisti no Brasil a
um exemplo tão acabado de arcaísmo como a excomunhão,
na semana passada, da mãe que permitiu o aborto da
filha de nove anos. Além de vítima de estupro
cometido pelo padrasto, a menina corria risco de morte. Se
Deus existe, ele deve estar envergonhado do que fazem usando
seu nome. É uma amostra do que significa a incapacidade
de se reciclar.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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