No Dona
Marta talvez esteja sendo construído um marco psicológico
fundamental na redução de assassinatos
Desde que comecei a investigar, no final da década
de 1980, grupos de extermínio, tráfico de drogas
e assassinato de crianças, pela primeira vez estou
com a sensação de que a cidade do Rio talvez
não seja um caso perdido. Em meio à enxurrada
de assaltos a turistas nesta semana, os sinais dessa mudança
podiam ser captados, na semana passada, pelas antenas que
oferecem internet grátis ao morro Dona Marta, encravado
na zona sul, onde se conseguiu, pelo menos até agora,
controlar a violência comandada pelo tráfico.
Levando-se em conta a extensão da pobreza e da marginalidade
juvenil no Rio, combinada com a corrupção policial,
aquele morro e suas antenas Wi-Fi podem parecer um detalhe.
Mas talvez ali esteja se construindo um marco psicológico
-um marco que foi fundamental na redução do
número de assassinatos em cidades como Nova York, Los
Angeles, Bogotá, Medellín e São Paulo.
Se isso se confirmar, estamos diante do desenho de uma das
mais importantes novidades sociais no país.
Pela localização da favela, cercada de escolas
em que estuda boa parte da elite do Rio -e pela mistura de
prevenção com repressão na tomada do
morro Dona Marta-, existe uma chance razoável de se
produzir impacto em toda a cidade e transmitir um símbolo
de que a guerra não está perdida. A virada da
falida financeiramente Nova York, com muitos de seus bairros
parecendo praças de guerra, está associada a
uma imagem -o desenho do coração entre as palavras
"I" e "YOU".
A virada de São Paulo está ligada ao movimento
de desarmamento lançado pela sociedade em frente à
Faculdade de Direito da USP, no largo São Francisco
-um espaço ligado a campanhas do abolicionismo, da
República e contra regimes ditatoriais. Bogotá
destruiu seu bairro mais violento e o transformou num parque;
Medellín construiu um metrô que uniu o morro
ao resto da cidade. A reação começa com
o esgotamento emocional de uma população acuada.
Mas o esgotamento não iria longe se não houvesse
um momento em que se apresenta um projeto confiável,
com resultados visíveis. O esgotamento do carioca é
visível por todos os lados, a começar pela romaria
daqueles que, inseguros, deixam uma das cidades mais belas
(na minha opinião, a mais bonita) do mundo na busca
de um refúgio. São Paulo, com sua feiura crônica,
é uma das beneficiárias do êxodo de talentos
do Rio.
Minha sensação sobre um possível início
de virada do Rio vem do fato de que, em primeiro lugar, estão
trabalhando de forma integrada três níveis de
governo. As antenas fazem parte de uma operação
que combina policiamento comunitário com as mais diferentes
intervenções sociais, do saneamento às
creches, passando pela iluminação. A prefeitura
anunciou que vai pagar uma bolsa de R$ 500 para os policiais,
cujo salário, em teoria, seria responsabilidade apenas
do governador.
Como apoio do Ministério da Educação,
lançou-se um plano para implantar ensino em tempo integral
em 150 escolas, transformando-as em centros comunitários,
localizados em áreas conflagradas. Gestões desse
tipo têm se revelado um antídoto contra a barbárie.
Um exemplo é Medellín, cuja topografia lembra
o Rio -mas a situação era muito, mas muito pior
naquela cidade colombiana, que chegou a ter 360 assassinatos
por 100 mil habitantes. Só para dar uma medida de comparação,
o índice carioca é de 37 por 100 mil. O governo
de São Paulo iniciou em Paraisópolis, onde ocorreram
distúrbios, operação similar às
que se desenvolveram em Medellín e Bogotá. Já
ocorreram outras operações semelhantes na cidade
de São Paulo, nas quais se registrou a queda rápida
dos indicadores de criminalidade.
Há uma série de fatores que acabam pesando
na redução da violência, como o gradual
aumento da escolaridade, especialmente do ensino médio,
a redução da gravidez precoce e a diminuição
do número de jovens, além da disseminação
de programas de distribuição de renda. Não
estou dizendo aqui que a situação vai necessariamente
melhorar no Rio -nem, muito menos, que vai melhorar rapidamente.
A desagregação foi longe demais na cidade, muito
mais longe do que em São Paulo.
Marginais viraram heróis e exemplo de executivo bem-sucedido
para centenas de milhares de crianças e adolescentes.
Dona Marta é uma favela mínima comparada a muitas
outras na cidade. A ofensiva só funciona se continuar
por vários anos, ampliando a tomada de territórios
e sobrevivendo a diferentes governadores e prefeitos. Até
que um dia os marginais (e os policiais corruptos) não
se sintam impunes, de tanto verem amigos ou conhecidos enjaulados,
e não transformados em heróis para os adolescentes.
Quando, e se isso vai acontecer, não sei, mas o fato
é que o Rio está começando a executar
uma terapia que funciona.
PS - Um relatório divulgado na semana passada pelo
Movimento Todos pela Educação sobre o nível
de aprendizado dos estudantes da oitava série de escolas
públicas nas capitais mostra o seguinte sobre o Rio:
80% deles não têm conhecimento adequado em língua
portuguesa; 88%, em matemática. Note que essa é
a média -nas favelas o aprendizado é muito mais
baixo. Aliás, São Paulo consegue ir pior -84%
não aprenderam português e 93%, matemática.
Como enfrentar a marginalidade juvenil com essa calamidade?
Coloquei os dados completos de todas as capitais neste
link.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S. Paulo, editoria
Cotidiano.
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